O grito sufocado da miséria
“Les Misérables” ou Os Miseráveis, é um romance de Victor Hugo publicado em 1862. Nesta obra clássica e emblemática da literatura francesa, ele descreve a vida das pessoas pobres da França provincial do século XIX. As questões sociais, seja no sentido das misérias ou da história propriamente dita da sociedade da época, são muito marcadas nas obras do autor. O desenrolar se concentra, particularmente, no destino do condenado Jean Valjean, visto como herói por ele, trazendo uma ideia realista e de moral. Victor Hugo, de forma profunda, destaca não só a condição da pobreza, do cárcere ou do sofrimento humano, mas sim destaca e traz o sentido da verdadeira miséria, que é a miséria da alma. A desumanização na época era tão forte, que expunha os seres humanos a condições miseráveis de vida.
Essa desumanização e miséria de alma, estão erradicadas nos nossos dias? Ou ainda perdura?
Em termos humanos, será que progredimos bastante, ou nossa realidade e sociedade ainda se comportam como naquele século?
Jean Valjean é preso e condenado a 5 anos por subtrair um pão para sete sobrinhos, filhos de sua irmã viúva. Preso e inconformado com seu julgamento por ter praticado um ato, apenas e somente, para a sobrevivência e subsistência, tenta por várias vezes fugir. E a cada tentativa de fuga, sua pena foi aumentando e lhe rendendo ao todo, 19 anos de prisão.
A razão e ser justo podem ser vistos de qual forma? O pão aqui é usado para saciar a fome física. Representa o primeiro nível da Teoria de Maslow em seu artigo "A teoria da motivação humana", que é atender à necessidade fisiológica ou à sobrevivência. O pão também é mencionado nos evangelhos. Além de saciar a fome, nosso Mestre dos mestres, usa o pão como uma mensagem fabulosa. Se é por milagre ou não, entendamos que existe uma simbologia profunda na multiplicação dos pães e, também na simbologia do pão em si, como alimento também da alma, da vida.
Dentro das leis humanas, razão e justiça entram em choques constantes. Existe uma Justiça Universal Cósmica, uma Justiça Divina e Natural, ao qual os estudiosos do direito chamam de Jusnaturalismo. Essa Lei Maior independe da lei humana, existe por detrás das legislações humanas.
Em função de uma ordem, condenação ou liberdade, ficam restritas e interpretadas dentro dessas leis escritas. E sabemos que muitas vezes, as legislações humanas são muito falhas. Existem registros de erros graves, conhecidos em toda história.
Valjean é libertado e dá início sua nova adaptação à sociedade. Ele cumpriu toda sua pena e agora nada mais deve. Será? Como a sociedade o recebeu de volta?
A sua readaptação custa inúmeros sofrimentos. Ninguém o aceita por ser um ex condenado.
De forma semelhante, o que existe na nossa atual sociedade repleta e transbordante de inúmeros preconceitos? Não seriam também condenações? Justas ou injustas? Será que as pessoas estão interessadas em procurar saber que tipo de ser humano existe, por trás do preconceito em que foi enquadrado? A verdade é relativa. Uma condenação à mercê da visão é perigosa. É como inocentar o lobo e sacrificar o cordeiro.
Esse romance ocorreu no século XIX, e nós agora, estamos em que século mesmo?
Se o ser humano não acreditasse no homem, na capacidade de resgate moral, ético e princípios, não traria de volta a possibilidade de devolver as esperanças, no verdadeiro sentido da liberdade, para as pessoas sofridas.
Perdeu a crônica de semana passada? Leia o texto na íntegra clicando aqui: Crônica #56 | Bendizer ou maldizer!
Victor Hugo nos proporciona um voto de confiança no homem. Nos devolve a fé no próprio ser humano. Nos mostra que, na capacidade de se manter a integridade da nossa consciência, reside a possibilidade dela prevalecer, enfrentando quaisquer adversidades, quaisquer situações difíceis da vida. Por outro lado, a pessoa que não tem integridade estará no estado miserável de alma, e mesmo que todas as condições de sua vida sejam favoráveis, continua mesmo assim um miserável.
Uma obra humanista por excelência. Acompanhe, portanto, com a miséria vista pelo lado filosófico em seu conteúdo. Ideia do sonho, da decepção e da desilusão que o homem sofre perante a crueldade do mundo.
Valjean, sozinho, busca um local para pernoite e todas as hospedarias o repeliram por seu passado marcado.
Como última tentativa vai ao um mosteiro e é recebido com muito respeito pelo Bispo Monsenhor Benvindo. Ele acolhe-o como um visitante importante, serve-lhe o jantar com talheres de prata e cama para passar a noite fria de inverno. No entanto, na calada da noite ele subtrai os talheres de prata e foge.
Hoje também, com a mente alienada, continuamos sendo condenados por sentimentos, pela posse de materiais, pelas relações sociais, aprisionados pelo júri da sociedade e depois, muitas vezes, abandonados pelos próprios homens que um dia se diziam irmãos. Muitas vezes, estamos tão condicionados que não acreditamos mais na bondade humana, desprezando ajudas que poderiam ser verdadeiras, dentro do princípio da real caridade. O grito de justiça é calado pela maioria e, na tentativa de se livrar dessas regras impostas, fica-se ainda mais, aprisionado e escravo nos pensamentos coletivos.
O Bispo, através da simples aceitação e acolhimento, nos mostra algo muito profundo. Algo não ao nível da mente humana e sim da mente divina, simbolizando a bondade, excepcional bondade humana.
Quando uma verdadeira ajuda vem, ela vem sem outras intenções, sem condenações e sem discriminações. Existem pessoas assim no mundo em que vivemos? Sim, existem sim... e não estão longe. São os amigos, sejam eles de parentesco corporal ou espiritual; os verdadeiros amigos que cultivamos com amor e colhemos com gratidão.
Valjean é surpreendido pelos policiais e levado ao Bispo para ser confirmado o roubo. Porém, o Bispo age de forma surpreendente, dizendo que não foram roubados e sim, foram dados de presente a ele. E acrescenta que na pressa dele ir embora, esquecera os dois castiçais de prata, ainda mais valiosos. Exclama aos policiais que Valjean prometera que usaria para o bem dos necessitados.
Impressionante o verdadeiro sentido da compaixão, uma compreensão profunda do estado emocional da pessoa, indo além de uma empatia. A compaixão combina-se a um desejo de aliviar ou minorar o sofrimento de outro ser, um especial conforto para com aqueles que sofrem. A compaixão pode levar alguém a sentir empatia pelo outro. É caracterizada através de ações, nas quais uma pessoa, agindo com espírito de compaixão, busca ajudar aqueles pelos quais se compadece. Ter compaixão é permanecer num estado emotivo positivo, enquanto tenta-se compreender o outro, sem invadir, no entanto, o seu espaço. Ela diferencia-se de outras formas de comportamento prestativo humano, no sentido de que seu foco primário, é o alívio da dor e sofrimentos alheios.
Atos de caridade que busquem, principalmente conceder benefícios em vez de aliviar a dor e o sofrimento, são mais corretamente classificados como atos de altruísmo. Neste sentido, a compaixão pode ser vista como um subconjunto do altruísmo, sendo definida como o tipo de comportamento que busca beneficiar os outros, minorando o sofrimento.
Jean diante do altar conversa com seu Eu Interior. A partir desse momento ele se pergunta por muitas vezes: “Quem sou eu? ”... “Quem sou eu? ”...
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-“ O que fiz? Amado Jesus, o que eu fiz? Tornei-me um ladrão na noite e um cão fugitivo. Será que cheguei no fundo e que já é tão tarde? Que nada mais resta além do meu grito de ódio? Os gritos no escuro que ninguém ouve, daqui onde me encontro neste momento da vida. Se havia outro caminho a seguir. Perdi-o há 20 longos anos, a minha vida foi uma guerra perdida! Deram-me um número e mataram Valjean, acorrentaram-me e entregaram-me à morte apenas por roubar um pedaço de pão? Então porque permitiu que o bispo tocasse a minha alma e me ensinasse amor? Ele me tratou como gente, confiou em mim, me chamou de irmão... Entregou a minha vida nas mãos de Deus soberano. Será isso possível? Se consigo sentir ódio pelo mundo, esse mesmo mundo que sempre me odiou?.... Tome um olho por outro, coração petrificado, foi assim que sempre vivi! É só isso que conheço! Uma palavra dele e eu estaria de volta aos chicotes, a todo aquele sofrimento e, em vez disso ele me oferece minha liberdade. Sinto a vergonha dentro de mim, me rasgando como uma faca. Ele me disse que tenho uma alma... Como ele sabe? Qual espírito virá para mudar minha vida? Há outro caminho a seguir? Estou tentando, mas eu caio, pois, a noite é inevitável, enquanto olho esse vazio, o turbilhão do meu pecado. Escaparei agora daquele mundo, do mundo de Jean Valjean! Jean Valjean não é nada agora! Outra história deve começar! ”
Valjean depois desse monólogo, perplexo, verdadeiro e com tantos questionamentos trazidos pela atitude inesperada do bondoso Bispo, é invadido nessa introspecção por uma importante decisão. Reconhece naquele ato um Plano Maior, para regenerar-se da realidade miserável que o havia consumido durante a sua vida no cárcere. Ele sente, pega e simboliza os castiçais como expressão da bondade humana, da justiça e, reconhece que a vida vale a pena ser vivida. Os castiçais, daquele momento em diante, representarão para Valjean o símbolo da luz divina, que corresponde à árvore de luz sagrada. O Bispo mentiu? Talvez tenha omitido e fez jus quando lhe entrega os dois castiçais. Esse ato do Bispo muda sua vida.
E como um talismã a lembrar o seu objetivo, ele carrega os castiçais consigo até a sua morte.
Valjean é perseguido constantemente por um inspetor de polícia, Javert. A vida de Javert se resume no cumprimento cego da lei. Ele representa a lei colocada pelos homens, a lei humana, altamente preconceituosa e superficial. Javert exclama ao mundo, prometendo para si mesmo a captura de Valjean.
“Lá fora na escuridão um fugitivo correndo longe de Deus. Longe de Suas graças. Que Deus seja minha testemunha. Eu nunca desistirei até estarmos cara a cara. Ele conhece o caminho no escuro. O meu é o caminho para o Senhor. Os que seguem na direção do que é direito terão sua recompensa. E se caírem como Lúcifer caiu. As chamas, a espada! Estrelas em profusão, impossíveis de serem contadas, preenchendo a escuridão. Com ordem e luz, vocês são as sentinelas silenciosas e confiantes, que tomam conta da noite. Conhecem seus lugares no céu. Mantém os seus rumos e propósitos e cada uma, em sua estação, retorna e retorna e é sempre a mesma. E se caírem como Lúcifer caiu, cairão em chamas. E assim será, como foi escrito à entrada do Paraiso; que os que hesitam e aos que caírem pagarão o preço. Senhor, permita-me achá-lo e que eu possa vê-lo seguro atrás das grades. Não descansarei até então, isso eu juro. Juro por essas estrelas!”
Cansado de ser perseguido pelo inspetor, ele se refugia numa cidade pequena e altera sua identidade. Torna- se um empresário bem-sucedido e também prefeito. Fica conhecido como um homem caridoso por ajudar e empregar os pobres e renegados, entre eles a mãe solteira Fantine, mãe de Cosette. Também por preconceito e discriminação das pessoas, Fantine é demitida da fábrica por um subordinado de Valjean, sem o seu conhecimento. Sem opções e desesperada pelo sustento oculto de sua filha, Fantine é tragada pela vida miserável das ruas. Encontrando e reconhecendo Fantine em situação deplorável, a socorre e no seu leito de morte promete cuidar de sua filha. Paralelo a isso, Valjean fica sabendo que Javert capturou um homem que estava detido para julgamento, como sendo ele. Poderia, na condição que havia conquistado, passar o resto da vida sem se identificar como o verdadeiro Jean Valjean. Mas, ele relembra do ato do Bispo e sente que está sendo feito uma injustiça para com o pobre homem. Ele se entrega e prova a sua verdadeira identidade. Pede, porém, à justiça, que lhe dê três dias para resgatar uma menina órfã, Cosette, e depois de pegá-la foge.
O destino os leva a um convento, onde Cosette recebe educação e vida decente, e aí permanecem por um longo tempo. Continua, no entanto, sempre procurado e perseguido por Javert. Nesse meio tempo, ocorre uma guerra civil e ele se alista como revolucionário. Fica sabendo que o inspetor, que o perseguira a vida toda, fora preso como espião e detido pelos revolucionários. Dizendo que tinha contas a prestar com o inspetor, Valjean pede para deixarem ele matá-lo. E em vez de executá-lo ele leva Javert para longe e o solta.
O inspetor, confuso com a atitude de sua sempre perseguida vítima, diz a ele que continuará perseguindo-o para cumprir com a lei. Valjean diz que ele não tinha condições de reconhecer suas motivações.
O inspetor percebeu que, a vida inteira ele tinha perseguido um fora da lei, mas um homem bom, virtuoso e íntegro. Percebeu nessa dor de despertar que, além da legislação humana que ele seguia fria e fielmente, existia uma segunda lei, uma lei da bondade. Ficou se perguntando se podia continuar perseguindo um homem bom, sem inveja, sem rancor, sem ódio, apesar de toda perseguição e injustiça que sofreu. E por outro lado, como poderia não perseguir e duvidar da lei que ele serviu a sua vida toda? Ficaria ele fora da lei. Era irracional, incoerente... então um paradoxo é gerado em sua mente. Não suportava saber e carregar o peso de ter passado sua vida inteira cumprindo uma lei, mas sendo injusto, perseguindo esse homem bom, desde a sua juventude. Esse paradoxo foi criado por ele mesmo, pois nunca havia refletido e entendido o que seria a verdadeira lei, a lei do bem, a lei da bondade. Javert tira sua própria vida se jogando no rio Sena. O caçador implacável e cumpridor da lei humana sucumbiu ao amor, compreensão e perdão verdadeiro do suposto réu.
Como estão nossas leis e os seus cumprimentos na atualidade?
Cosette ama Valjean como seu querido pai, recebendo dele a graça de uma educação, abrindo assim um caminho sem as misérias primárias, levando-a também a conquistar um casamento com Marius, de família aristocrata. Valjean a ama também como filha, maior benção de sua vida... deixou de odiar e conheceu o amor:
“Amar alguém é ver a face de Deus”.
A Vida os coloca novamente juntos no dia de seu casamento, e J. Valjean morre contente, sob a luz dos castiçais do Bispo. Consta que um anjo o espera para levar sua alma ao céu. A seu pedido, ele é enterrado em uma cova anônima. Uma pessoa desconhecida escreve estas linhas na sua lápide:
“Ele dorme. Embora a sorte lhe tenha sido adversa ele viveu.
Morreu quando perdeu seu anjo; partiu com a mesma simplicidade, como a chegada da noite após o dia”
De forma bastante resumida trazemos essa obra clássica, que apresenta profundas lições sobre caráter, virtude, ética, bondade, humildade, dignidade, fortaleza, redenção... desigualdades sociais, morais, tristezas, arrogâncias, injustiças. Tudo o que está presente de forma ativa, contínua e concreta dentro de uma dita sociedade humana.
Seja em que século for, mudando e trocando apenas os cenários; onde permanecem ainda fortes e imutáveis as misérias de fome, de pobreza, as misérias da vida e, as mais comprometedoras, as misérias da alma.
Porém, podem essas misérias da alma renderem-se à compaixão e ao amor.
Victor Hugo, grande humanista, descortinou e mostrou a nossa realidade humana, dando-nos um caminho possível de se trilhar, norteando as possibilidades para diminuir de nossas jornadas as misérias e os miseráveis.
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Staff que trabalha para as Crônicas chegarem até você
• Cronista e filósofo neo
Otavio Yagima
• Coautora
Maria Hisae
• Narração
Patrícia Ayumi
• Artes
ThIago Martins
• Edição
Leonardo Fernandes
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