Crônica #128 | Pescador de almas.
- Redação neonews
- 3 de jun.
- 10 min de leitura
Ilusão. Vingança. Caos. Dor.

O que você encontrará nesta crônica:
"Ilusão. Vingança. Caos. Dor. Quatro faces da mesma sombra, que arrastam almas esquecidas do céu, presas ao chão das próprias feridas. Fases entrelaçadas, que se repetem no silêncio do caos, disfarçadas de controle, travestidas de normalidade. Haverá saída? Nem sabemos mais o que é real ou ilusório. Falam do poder da escolha, mas que escolha? Escolher a luz, quando tudo ao redor grita escuridão? Acreditar no perdão, quando nem sabemos mais onde mora a verdade? E a libertação, onde se esconde? Talvez a maior prisão seja crer que só há chão, enquanto o céu, paciente, apenas espera o nosso olhar."

I. Da terra ao céu.
Estávamos no norte do nosso continente americano, mais precisamente em Salt Lake City, Utah, Estados Unidos. Era dezembro, e a cidade toda respirava o Natal. O espírito natalino já se infiltrava nas vitrines, nas ruas, nas luzes e guirlandas, e o aroma do inverno misturado ao dos pinheiros conferia um sabor original ao nosso chocolate quente. A música que passeava pelas ruas envolvia o ar com um encanto especial, como se, nesse período, o mundo escolhesse ser mais belo.
O frio, que beirava graus negativos, parecia nem existir diante da ansiedade que nos aquecia por dentro. Naquele dia, uma aventura nos aguardava; nossos corações se aceleravam só de imaginar o destino daquele passeio, na expectativa do que estava por vir. A aventura já havia começado no dia anterior, quando desafiamos a neve, cortando sua imensidão branca entre montanhas e florestas, deslizando com o espírito livre e solto que só quem pilota um snowmobile sabe descrever. Mas, como se não bastasse cruzar por entre as curvas e todas aquelas paisagens cinematográficas na terra, naquele dia sairíamos da terra para o céu. Ironicamente, depois de tanto flutuar de snowmobile sobre a neve, era a vez de voar de verdade.
Nossos olhos já haviam experimentado aquele espetáculo lá do alto, pelas janelas do avião na chegada. As montanhas cobertas de neve, imponentes, quase como etéreas, rodeadas pelo silêncio das alturas. E então, agora no chão, estávamos prestes a reencontrar aquele cenário, só que por outros ângulos, mais livres, mais leves, mais próximos, pelos olhos de um voo de balão.
Descemos do carro em um campo aberto. À nossa frente, o balão já dançava no vento, inflado com ar quente, imenso, vibrante, como se também estivesse aguardando pela aventura.
E então, rompendo aquele silêncio no meio do frio, uma voz cheia de humor e entusiasmo cortou o vento. Era o balonista, com um largo sorriso e sotaque carregado, anunciando com um grito bem humorado:
- “Welcome to the wonderful journey!” - Bem-vindos à maravilhosa jornada!
E as palavras foram perfeitas, pois seria, de fato, uma espetacular travessia: da terra ao céu, do céu de volta para algo que já não seria como antes, cá embaixo, nesta vida terrena.
O “piloto” era um senhor de bigodes grossos, que usava boina, cachecol, gravata borboleta e óculos de proteção, típico personagem que parecia ter saído direto de algum filme sobre aviadores da Primeira Guerra. Teatral e dono de uma presença que aquecia mais que qualquer maçarico do balão, sua figura carismática era quase uma atração à parte.
O embarque, claro, passou por momentos cômicos. Com aquelas roupas pesadas de neve, enfiar-se dentro do cesto parecia um desafio intransponível para algumas pessoas. Entre muitos risos, doses de euforia e alguns tropeços, finalmente todos se ajeitaram. Devidamente posicionados e equilibrados para a correta distribuição de peso, veio o comando, firme, animado e com uma vibração irresistivelmente contagiante:
- “Is everyone ready? Let's go!” – Todos preparados? Então, vamos nessa!
As cordas de ancoragem foram desamarradas e, rasgando o silêncio com o som estridente das labaredas do maçarico sobre nossas cabeças, o balão lentamente começava a flutuar, causando um misto de fascínio e apreensão. Risos, sorrisos, olhos espantados, diversão para todos.
Subida suave, movimento quase vertical. O barulho do maçarico soprando fogo preenchia o ar enquanto a terra se despedia dos nossos pés. O céu se abria generoso e, logo, as belíssimas paisagens enchiam nossos olhos de puro encantamento. Lá embaixo, o mundo criado pelas divinas mãos humanas. Ali nas alturas, revelava-se um outro mundo: aquele esculpido pela perfeição do Criador.
Então, as magníficas e grandiosas montanhas vestidas de neve mostravam-se por inteiro, sem esconderijos, sem ângulos limitados, cercadas por um horizonte que parecia não ter fim.
Naquele voo, percebi com nitidez a diferença entre ver e contemplar. Ver é automático. Contemplar exige presença, silêncio interno e entrega. Então, algo dentro de mim começava a mudar. A paisagem terrena, distanciada, tudo pequeno e quase irrelevante aos olhos de quem, naquele instante, experimentava a perspectiva do céu. E, diante da imensidão que se estendia à minha frente, tudo pareceu ganhar outra proporção: os problemas, os ruídos, as vaidades... e tudo aquilo que parecia tão urgente, tão absoluto, tão pesado... se dissolvia na vastidão. Percebi que nem tudo precisa ser carregado, nem tudo pertence ao chão.
E, curiosamente, ao subir, pode-se perceber o quanto passamos a vida inteira olhando apenas para baixo, para as contas, para os prazos, para os celulares... Fomos feitos, sim, para estar na terra, para executar as tarefas e as urgências do mundo matéria. Mas também para erguer os olhos aos céus, olhar para cima e para dentro. Afinal, a vida é tanto chão quanto céu, tanto matéria quanto espírito e, portanto, tanto agora quanto eternidade. Talvez devêssemos, de vez em quando, aprender a voar sem sair do chão.
Estamos realmente presentes em nossa própria espiritualidade? Em que ponto nos encontramos? Voar não significa apenas ganhar altura, mas também mudar a perspectiva: olhar de cima, com a perspectiva de não ver a paisagem física, mas a paisagem da alma. E perceber o quanto o mundo se tornou raso é algo perturbador para nossa verdadeira essência.
No silêncio rarefeito das alturas, senti que a vida, em sua essência, era muito mais parecida com aquele voo do que eu imaginara. Somos todos viajantes desse espaço entre a terra e o infinito. Muitos preferem permanecer presos ao chão, outros se perdem nas neblinas da própria mente. Porém, há também aqueles que, como um balão que se eleva, escolhem subir e, então, passam a enxergar além, com um campo ampliado de visão.
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Il. O pescador de almas.
A vida é curiosa. Vez ou outra, nos leva a encontros que não são casuais. E, nesses encontros, somos levados a enxergar um pouco além da simples superfície. Existem pessoas que cruzam nosso caminho carregando, dentro de si, mapas de territórios invisíveis. E esse privilégio me foi concedido.
Era um desabafo, ou talvez um chamado. Um relato carregado de revelações que atravessavam não apenas sua própria alma, mas também a história de uma terceira pessoa, que naquele momento vinha sendo perseguida. Uma perseguição movida por vingança, nascida de mágoas não curadas, de olhares que preferiam julgar a compreender.
E, ao trazer à tona aquela história, sua fala também se tornava uma súplica sobre um mundo que, aos poucos, deixou de olhar para o céu. Um mundo que deixou de acreditar na transcendência, na espiritualidade viva, pulsante e real. Onde crer passou a ser visto como fraqueza, onde sentir virou exagero, e buscar nosso Pai Celestial se tornou motivo de sarcasmo... Aquele silêncio carregado de ironia, típico de quem já não sabe mais reconhecer o que é sagrado.
E foi nesse cenário, em que tantos se perdem dos céus, que aquela alma, autora do desabafo, teve sua consciência conduzida a transitar por entre as dimensões que os olhos não alcançam. Percorreu abismos invisíveis e territórios sombrios, por onde tantas almas, sem perceber, tropeçam a todo instante. Carregava, nas feridas e nas cicatrizes, marcas vivas, gravadas no mais profundo de sua alma. E, diante de sua alma sofrida, que silenciosamente buscava socorro, ela foi, por fim, resgatada. No silêncio entre as dimensões, onde tempo e espaço se desdobram em mistérios, uma luz, enfim, que não podia ser explicada, apenas sentida, permitiu que sua alma sedenta se adentrasse, despertando-a para a verdade invisível que habita além do véu da matéria, presente nos céus do nosso universo. E assim floresceu seu despertar, que se revelou como um chamado sagrado. Foi acolhida por mãos invisíveis, tecidas de compaixão, misericórdia e imensurável amor. E foi neste vasto oceano da existência que ele, enfim, se fez presente: um pescador, não de peixes, não de coisas, mas de almas.
Assim como o balonista lê os ventos e conversa com o céu antes de se lançar, também os pescadores de almas precisam estar em voo constante, sem depender de balões, ventos ou de altitudes físicas. Um voo que se faz por dentro, exigindo coragem para flutuar sobre os vales sombrios da existência, atravessando as correntes invisíveis que movem o espírito humano. E apesar da dor, do medo, da desesperança ou da dúvida, ainda assim escolhem permanecer no alto, sendo uma âncora de luz. Não para prender, mas para libertar. Para lembrar que existe o caminho, que há saída. Que o céu não se fechou. Aqueles que, mesmo sem vento externo, seguem inflando seus balões de esperança, na fé de que alguém, ao olhar para o alto, recorde que o céu ainda existe. Porque há muitas almas que clamam por luz, compaixão e renascimento, sedentas por um caminho que as reconduza ao céu, de onde se afastaram, aprisionadas pelo peso desta terra.

lll. Do céu para a terra: o retorno
E, nesse peso e esquecimento, a humanidade, perdida no excesso de matéria, se afastou do céu.
Busca cura sem fé, espera milagres, mas desconfia de quem os realiza. Foi nesse mundo descrente que ela, a alma inquieta, desabafou uma verdade silenciada: que falar do céu e do invisível é, quase sempre, correr o risco de ser chamada de ingênua ou tola. Mas seria mesmo tolice? Ela sentia que não. Intuía, cada vez mais, que talvez isso fosse, justamente, um chamado. Ou uma missão. Uma lembrança urgente de que nem tudo o que é real pode ser visto. Que existem mundos invisíveis e verdades que só se abrem a quem tem coragem de sentir e acreditar além do que a lógica explica.
E, hoje, nas terras deste mundo, quando um milagre acontece, quando uma alma se liberta, quando uma visão espiritual se manifesta... o que surge, quase imediatamente? O ceticismo. O riso irônico. O olhar torto de julgamento apressado. E não raro... o rótulo de loucura ou invenção.
E, assim, pouco a pouco, o que é verdadeiro e sagrado vira ilusão. Esse é, talvez, o triunfo mais sutil e perverso das forças que alimentam a escuridão: fazer parecer que o bem é fantasia, que o espiritual soe como algo infantil, e que faz da fé motivo de vergonha.
E, nesse cenário, quem ainda sente, vê e acredita… começa, primeiro, a duvidar de si. Depois, dos outros. Assim se planta a dúvida. Assim se quebra a confiança entre os que carregam a luz. O mal se infiltra não pela força, mas pelo desprezo, pela zombaria que faz da espiritualidade um delírio, da conexão com nosso Pai Celestial uma superstição.
E, ao longo dos séculos, de tanto ouvir isso, adoecemos. Nos envergonhamos. E, por medo, nos calamos e, muitas vezes, fomos, e ainda somos, alvo de ataques, críticas e exclusão.
Quando se perde a lembrança do céu, quando o olhar se fixa apenas no chão, instala-se o vazio da alma, onde o ego governa absoluto, ignorando o espírito. Assim nasceu a perseguição daquela terceira pessoa. A vingança, tão assustadora e tão presente em todos os cantos deste mundo – é, entre tantos enganos, um dos mais dolorosos e amargos desvios da existência, pois sustenta a ilusão de que ferir o outro é uma forma de reparar a dor. É assim que a vingança se disfarça de justiça. Na verdade, ela é um grito da alma desconectada de sua origem, que, sem perceber, escolhe prolongar o ciclo da dor.
Esse ciclo se repete e jamais se quebra se o olhar permanecer preso apenas ao chão, ao ego, à mágoa, à matéria. Quem busca vingança não percebe que, ao tentar ferir, ao tentar devolver dor por dor, acaba preso ao mesmo fardo que queria deixar para trás.
Lembremos sempre: o Divino não se vinga. A vida não pune; apenas ensina. Mais cedo ou mais tarde, todo aquele que escolhe se vingar descobre, muitas vezes, pela sua própria dor, que a vingança não liberta, não cura. Ela apenas aprisiona mais e mais.
Só quando o olhar volta a subir... quando a alma se lembra do céu, é que compreendemos que a verdadeira libertação nunca esteve no outro, nem no castigo, nem na reparação forçada... mas na escolha de quebrar o ciclo. No perdão que oferecemos. E na paz que escolhemos, finalmente, a habitar.
Hoje, depois daquele voo em que senti o chão perder seu poder diante do céu que se abriu sem limites, reservei-me a meditar sobre o desfecho do seu desabafo: “Já não há mais espaço para silêncio. Quem viu e sentiu além não sabe mais recuar. Se crer no invisível é loucura, então que seja. Melhor ser louco com o céu do que lúcido em um mundo sem essência.
A espiritualidade não é uma ilusão; é real. O invisível é mais sólido que qualquer chão. O Divino não se resume a uma ideia; é presença viva, eterna e amorosa. Que o mundo insista em negar, se quiser, mas haverá sempre aqueles que permanecem. Enquanto houver vento, céu e alma... haverá voz para falar da luz. Até que todos, assim como eu, recuperem a memória do que jamais deveriam ter esquecido. Até que todos voltem a reconhecer a verdadeira espiritualidade, aquela que nunca deixou de estar aqui, apenas estava esquecida, esperando que alguém, enfim, voltasse a olhar para cima, para o céu.”
Depois de se perder no azul infinito e tocar as verdades do céu, foi preciso, então, descer e sentir novamente o peso da matéria. Assim como o balão sobe e precisa retornar para cumprir sua missão, assim também somos nós: pontes entre céu e terra, viajantes entre dois mundos. Viajantes do invisível, caminhantes de um céu que, por vezes, esquecemos; o céu real, aquele que não se vê com os olhos físicos...
E seguimos... buscando respostas que o mundo visível não soube, não pôde e, talvez, nunca saberá oferecer. Afinal, não seria esse o verdadeiro voo? O voo que não pede asas nem altura, mas coragem para elevar a própria consciência? Fé para sustentar o que os olhos não veem?
Amor para seguir lançando redes de luz - pescadores de almas - mesmo quando o mundo inteiro parece ter esquecido como se olha para o céu.
Porque é tempo de lembrar que o tempo... é agora. Que o céu nunca deixou de estar ali.
Que, mesmo com os pés no chão, a alma segue voando, entendendo que a verdadeira missão acontece aqui: neste chão, nesta vida, neste agora. E enquanto houver o céu, sempre haverá a direção.

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Esta é uma obra editada sob aspectos do cotidiano, retratando questões comuns do nosso dia a dia. A crônica não tem como objetivo trazer verdades absolutas, e sim reflexões para nossas questões humanas.