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Crônica #137 | Ninho vazio.

  • Foto do escritor: Redação neonews
    Redação neonews
  • há 3 dias
  • 9 min de leitura

O voo que permanece no ar.


Capa Crônica #137 | Ninho vazio.
neOriginals Crônicas

O que você encontrará nesta crônica:


"Ninho Vazio — O voo que permanece no ar” é um convite a olhar para as ausências que nos reposicionam diante da vida e para os espaços que ela, inevitavelmente, desocupa. Nesta crônica, você é chamado a reconhecer os ninhos que se desfizeram — na casa, nos afetos, nos sonhos — e a perceber que, mesmo quando algo parte, o que é verdadeiro continua a voar dentro de nós. É sobre perda, permanência e o reencontro com o próprio coração."



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I. O silêncio doméstico.


Como de costume, naqueles dias de internação, eu estava no hospital aguardando a troca de acompanhantes com minha esposa. Nossa querida vovó repousava no leito, entre a vida e o além, com o corpo à beira dos próprios limites.

 

O quarto respirava aquele misto de silêncio e som que só hospitais têm: o bip dos monitores e o cheiro insistente de antisséptico. O ar, como sempre, era denso, como se carregasse o peso de todas as preces que pareciam se estender corredor afora. Foi então que avistei, ao final do corredor, uma figura parada. Cabelos grisalhos, um casaco cinza que parecia pesar mais do que ela mesma envolvia seu corpo. Aproximou-se devagar e, quando reconheci seu rosto, o passado me envolveu em silêncio. - “Você?”, murmurei, surpreso. Era Alice.

 

Há tempos não a víamos. Ela sorriu com uma ternura cansada e nos deu um longo abraço. - “Não podia deixar de vir, meus amigos,” disse. - “Sei o quanto é sofrido lidar com perdas e despedidas.”

 

Sabíamos que ela vinha atravessando uma difícil e longa fase, arrastada, quase sem fim.  

Alice sempre fora o tipo de mulher que se doava por inteiro. Desde o casamento, dividia-se entre o trabalho, a família e o zelo constante em manter tudo em ordem. Anos e anos cuidando com tanta entrega do crescimento dos filhos que acabou se esquecendo de crescer junto com eles; havia sido uma mãe dedicada, que colocou tudo de si na maternidade.

 

Algum tempo depois do casamento do filho caçula, a solidão começou a se adensar. A casa ficou grande demais, e o tempo passou a correr em outro ritmo, como se anunciasse uma nova fase da vida. Foi então que ela sentiu, na alma, um peso espiritual, aquele vazio que não era apenas físico. Experimentava sozinha o que se apresentava em sua forma mais absoluta: o silêncio doméstico.

 

O ninho estava vazio, e o papel de mãe, agora sem função visível, abria um espaço que pedia uma nova forma, um modo diferente de existir sem os filhos por perto. Mas o amor, esse, não conhece distâncias. O filho nasce do corpo, mas permanece no coração da mãe. E, quando parte, alçando seus próprios voos, leva consigo um fragmento da eternidade, aquele elo sutil que nem o tempo é capaz de desfazer. E, entre o que vai e o que permanece, nasce um território interior ainda inexplorado.

 

Deveria permanecer um espaço sagrado, não vazio, mas preenchido pelo repouso do amor que vai se refazendo. O lar, que vai mudando de forma, exige que o espírito aprenda a acolher o silêncio.

 

Alice, durante todos aqueles anos, viveu sob os nomes que o mundo lhe deu: esposa, mãe, cuidadora. Mas agora, sozinha, precisava encarar o que havia restado de si mesma, redescobrir a pessoa que existia além dos papéis que desempenhou. Não mais como mãe de alguém, e sim como mulher diante de si própria: reencontrar o próprio nome e o próprio centro, um lugar que, por tanto tempo, ficara esquecido.

Quantos de nós, de certa forma, fazemos o mesmo?

 

Ela mesma se perguntava quem era depois que todos se foram. E descobria, com inquietação, que havia mais perguntas do que respostas dentro dela. Percebia, então, o quanto tinha se definido pelo outro, pela rotina, pelos filhos, pela constante necessidade de cuidar, e como isso agora trazia um vazio inesperado. Encontrava, diante de si, um território interior que nunca precisou explorar enquanto foi indispensável. Lamentou carregar aquela dor sozinha, sem o apoio do pai de seus filhos.


A figura paterna, embora também sofra, na maioria das vezes vê a partida dos filhos como parte natural de um ciclo da vida. Para ele, o vazio que fica é mais como uma ausência física: a falta do barulho, das conversas, da presença concreta. A mãe, porém, por sua própria natureza, sente o impacto acontecer em outra profundidade. Ela sente, na alma, como se, junto com o filho, tivesse partido uma parte de si mesma. O papel que, por tantos anos, deu sentido aos seus dias como mãe cuidadora e responsável parece desmoronar de repente.

 

Nesse ponto da vida, as mães inevitavelmente se veem diante do desafio delicado do exercício do desapego. Quando percebem, de forma concreta, que os filhos seguirão seus próprios caminhos e que não podem ser retidos. Racionalmente, pela lógica, é fácil de entender; viver essa verdade, porém, exige tempo, porque o coração raramente acompanha o raciocínio com a mesma rapidez e precisa de tempo para assimilar e se reorganizar.


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Il. A sós.


O que Alice sentia não era um caso isolado; era uma dinâmica comum a muitos casais que se perdem na rotina, repetida em lares e em almas que confundem amor com função. Muitos passam por situações parecidas quando vivem anos orbitando apenas em torno dos filhos, como se eles fossem o único centro possível, estruturando toda a rotina em função deles e deixando o relacionamento em segundo plano.


Quando essa configuração se prolonga por muito tempo, a vida, sábia em suas leis, cobra aquilo que deixamos de cultivar. O amor, se não for nutrido, não floresce só porque, de repente, sobrou tempo ou espaço. E então, quando se veem sozinhos, quando o ninho se esvazia, sentindo-se perdidos e fragilizados por uma vida corrida, vivida mais na superficialidade, percebem que o tempo disponível não é o mesmo que intimidade, e que estar ao lado não é o mesmo que caminhar juntos em espírito.


Alice, com o olhar úmido, abriu o coração: - “A escuridão vem me encobrindo nesses últimos meses e, hoje, tudo parece um vazio. A luz que eu achava que sempre ia me acompanhar está ficando cada vez mais fraca.”


E, ali, naquele desabafo, trouxe o passado, o casamento, os filhos e o tempo que escorreu sem que ela percebesse. Culpou o tempo; depois, acusou a si mesma pelos erros cometidos. Disse que, às vezes, se olhava no espelho e via os cabelos brancos tomando seu rosto, sem que tivesse qualquer vontade de pintá-los. Estava cansada, se achando velha demais, com as marcas das pausas que não soube, ou não se permitiu, fazer. Alice, que começara a sentir o vazio depois da partida dos filhos, falava dele como quem descreve um abismo interno. E, de certo modo, era mesmo algo mais profundo e maior: o mesmo vazio que se espalha pelas vidas modernas, nesses tempos difíceis em que o fazer se impõe sobre o ser e a alma se perde entre compromissos.


Viktor Frankl dizia que é justamente nesse território árido que o ser humano encontra espaço para reencontrar a Luz e a liberdade de recriar o sentido da própria existência. O vazio, então, desse ponto de vista, deixa de ser um monstro e passa a ser um berço para uma nova percepção, uma nova forma de existir.


Divorciada, Alice revivia a triste e amarga constatação de que o rompimento começara muito antes do divórcio. No corre-corre da vida, não percebera que não havia construído uma verdadeira comunhão com o marido. O amor conjugal, aos poucos, havia se tornado em rotina funcional, e o casamento passou a ser sustentado apenas pelos papéis de mãe e pai.


Seu marido, há tempos distante, buscava refúgio, ou talvez apenas escapes, em outros braços. Até que, logo após a casa se esvaziar, ele lhe fez a pergunta que tirou o chão sob seus pés:                            


- “O que vamos fazer da nossa vida agora, sem nenhum filho aqui em casa? Como vamos ficar olhando um para a cara do outro?”


A pergunta, seca e cruel em sua frieza, caiu como uma pedra em um lago parado. As águas se abriram, trazendo à tona o que estava no fundo.


Para Alice, foi o despertar que não esperava: o reconhecimento da falta de encontro, da vida vivida por inércia. O amor sem raízes no espírito se desmancha; não resiste quando o vento sopra para mudanças.


O afeto entre eles não havia sido cultivado como algo vivo; foi mantido como uma forma de dever. Só então, tardiamente, ela percebeu que o amor entre ambos havia se dissolvido há muito tempo. O divórcio foi apenas uma formalidade, e o início de uma nova dor para ela.

 


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lII. O ninho da alma. 


Naquela tarde, no hospital, enquanto o corredor carregava a atmosfera pesada das despedidas, pensei em quantas vezes deixamos escapar o essencial, vivendo apenas no automatismo quase ritual, executando papéis ou respondendo a urgências.


É curioso, e trágico, como chamamos de amor aquilo que já se tornou apenas mecanismo, e de cuidado aquilo que realizamos por função, não por vínculo. E seguimos, sem perceber, arrastados por uma inércia confortável que ingenuamente nos convence de que ainda estamos juntos, quando na realidade já estamos separados há muito tempo, talvez desde o momento em que paramos de nos enxergar.


Quando, afinal, começamos a abandonar o essencial? E, sobretudo, por quê?


Enquanto ouvia Alice falar, pensei em como aquele quarto de hospital parecia devolver, a cada um de nós, uma espécie de verdade íntima. Cada palavra dela carregava o peso de todos os tempos sofridos.


E, de algum modo, o hospital, com seu silêncio cheio de espera e seu ar denso de preces, também acolhia a sua dor. Naquele momento, diante dos limites da fragilidade humana que emanava não apenas da nossa vovó, a verdade espiritual se impunha: quando o corpo se enfraquece, sentimentos guardados encontram espaço para emergir, e o espírito, libertado das defesas habituais, se mostra com mais honestidade.


Qualquer vaidade, ali, se calava, porque a vida, em sua sabedoria, se mostrava breve no corpo, mas imensamente profunda no espírito. É curioso, e profundamente humano, como a vida se deixa ver com mais clareza justamente quando parece se despedir.


Quando somos confrontados com a finitude, a alma parece se despir de tudo o que é supérfluo, lembrando apenas daquilo que sempre foi essencial, mas que tantas vezes ignoramos.  


Enquanto Alice falava do vazio deixado pela partida dos filhos, eu compreendia que aquele ninho vazio não era apenas dela e não morava apenas nas casas em que os filhos cresceram. Ele podia existir em qualquer lugar de onde algo amado tivesse partido. Pensei em sonhos perdidos, amores desfeitos, na aposentadoria que encerra ciclos de trabalho e que conferia identidade, ou mesmo nos abalos da fé. Lidar com os ninhos que se esvaziam é um exercício constante em nossas vidas, uma experiência espiritual marcada pela lição do desapego, tão difícil para nós, que habitamos este mundo tão material.


Você está vivendo algum ninho vazio em sua vida?


Todos nós, em algum momento, enfrentaremos ausências e lutos, muitas vezes por alguém vivo e, outras, pelo mais profundo dos vazios: aquele que nasce da perda irreversível, que não se preencherá.


O ninho que se desfez antes da hora esperada, em que o coração da mãe seguirá contando os dias por alguém que não voltará; o luto que chega pela tragédia ou pela morte. Aprender a existir mesmo sem o outro é a realidade de muitos de nós; essa é uma dor ancestral, tão humana quanto inevitável.


Alice, que havia colocado sua vida dentro da família, se viu sem chão quando a casa esvaziou, perdida entre o que foi e o que já não era mais.

Quantas vezes resistimos, tentando segurar o que já passou ou o que cumpriu seu ciclo? Dentro dela, foi se formando um ninho vazio da alma, aquele vazio existencial que engole o encanto da vida e transforma tudo em repetição sem sentido.


Seja qual for o ninho vazio que vivemos, essa passagem precisa ser atravessada para que, um dia, possa deixar de ser perda. Os caminhos que não pudemos evitar, ainda assim, fazem parte do percurso necessário ao nosso crescimento. Um dia, mais adiante, talvez possamos acolher esses caminhos e compreendê-los, para que reencontremos a paz que um dia parecia perdida.


O apego faz parte da nossa natureza humana, mas a maternidade é expressão divina.


O delicado processo de uma libertação espiritual traz consigo a transição do amor de posse, intenso, transitório e emocional, para um amor de essência, que transcende a individualidade e se torna universal. O amor, quando amadurece, não prende; ele confia, não exige presença. Amar, nesse estágio, significa compreender que criar é preparar para o voo e, portanto, não pedir que voltem.


Alice parecia perceber, pela experiência e através de toda sua dor, que o vínculo perdido consigo mesma não podia ser substituído pelos filhos. Experimentava, em seu íntimo, a lição profunda da alma, o processo de evolução de todo espírito: o amor autêntico permanece além de qualquer distância, e a comunhão se mantém viva.


E a vida, afinal, não lhe havia tirado nada.


Antes sufocado pela ausência familiar, o coração retomava seu ritmo. O vazio, agora suavizado, abria passagem para a luz; e a vida, com sua paciência, reconduzia-lhe a plenitude perdida.


Há algum vazio que você resiste em atravessar, e que, se acolhido, poderia devolver-lhe a paz e a plenitude?



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Time Crônicas





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Esta é uma obra editada sob aspectos do cotidiano, retratando questões comuns do nosso dia a dia. A crônica não tem como objetivo trazer verdades absolutas, e sim reflexões para nossas questões humanas.


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