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Crônica #136 | Além da culpa.

  • Foto do escritor: Redação neonews
    Redação neonews
  • há 41 minutos
  • 9 min de leitura

Fragmentos do ser em reconstrução.


Capa Crônica #136 | Além da culpa.
neOriginals Crônicas

O que você encontrará nesta crônica:


"Quem nunca errou e se pegou revendo o passado, desejando ter agido de forma diferente? Escolhas malfeitas, erros e arrependimentos pesam na alma, formando uma arquitetura íntima e complexa: a culpa. Ela acusa, aprisiona e não se cala; às vezes, grita. Surge no olhar que evitamos, nas palavras que deixamos de dizer, camuflada como senso de dever ou assumindo a forma de autopunição. Onde encontrar o caminho da paz? Existem escolhas que gostaríamos de desfazer, e é possível acolher os erros sem se perder, dando início a um movimento de cura e reconstrução. Você já viveu esse desafio interior?"



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I. Auditoria da alma.


Aquele dia parecia ter amanhecido sob o peso dos prazos. A vistoria na obra prometia ser breve, apenas uma inspeção para verificar se estávamos dentro do cronograma traçado. Mas, assim como a vida, os cronogramas raramente obedecem ao papel, insistindo em escapar do traço inicial.

 

Eu e meu colega João Roberto, ou simplesmente JR, como todos o chamavam, acompanhávamos a equipe de fiscalização entre andaimes e papéis, conferindo todos os itens e detalhes. O trabalho, que deveria ser concluído pela manhã, se estendeu. O relógio correu, o almoço chegou, e nós continuávamos lá, riscando metas e somando atrasos.

 

JR sempre fora um homem de precisão, ético, discreto e objetivo, era um profissional exemplar. Sabia falar com firmeza, e suas palavras eram sempre ponderadas ao lidar com os funcionários. Trazia soluções assertivas onde muitos só enxergavam problemas. Almoçávamos juntos com frequência, e as conversas geralmente giravam em torno de engenharia, economia e política. Mas naquele dia, algo estava diferente. Sua fala vinha curta, o passo mais lento, o olhar cabisbaixo, voltado para dentro. Não era o mesmo homem que, com brilho nos olhos, discutia indicadores de produtividade. De repente, ali, estava alguém atravessado por preocupações.

 

Estávamos entrando no restaurante quando JR, aquele homem que, até então, se mostrava feito de certezas, deixou escapar, quase murmurando:

 

“-Culpa, culpa...”  

- “Meu amigo, não se preocupe com a auditoria”, arrisquei dizer, tentando quebrar o peso que parecia ter se instalado nele.  “A obra está atrasada em alguns pontos, mas nada que não possamos recuperar. Faremos um estudo específico para o setor deficitário. Não se culpe.” 

                                        

Com um meio sorriso contido, ele ergueu os olhos e respirou fundo. Seguimos para a mesa, equilibrando os pratos em uma mão e a garrafa de água na outra. Os capacetes ficaram de lado, junto com os rolos de projetos e algumas planilhas. A tensão daquela manhã pareceu se dissolver aos poucos, levando consigo as preocupações com prazos e relatórios. Afinal, por trás de todas as exigências, havia pessoas, e até nós, engenheiros, precisávamos de um intervalo para respirar.

 

JR, ainda com o semblante angustiado começou a desabafar: 

- “Sabe, parceiro, lidamos com tantas obras e já resolvemos juntos tantos desafios, mas tem um que não consigo vencer. Sinto que vou morrer levando comigo essa culpa que carrego no peito como uma pedra antiga. Ela pesa na alma e não me dá descanso. Me segue, me persegue e tira a minha paz.

 

Parecia que as palavras dele caíam sobre a mesa como fragmentos de um concreto antigo. Então, o silêncio se rachou entre nós, deixando-me sem reação por alguns instantes. Eu estava surpreso diante daquela confissão inesperada, que me fez perceber que não era a vistoria da obra que o consumia, era sim uma outra auditoria, muito mais íntima, aquela que acontece dentro da própria consciência.


Naquele momento, meus olhos acompanharam uma das plantas do projeto que escorregou lentamente e caiu da mesa. O acaso pareceu simbólico. Ironia ou presságio, aquilo parecia simbolizar aquele nosso instante.


A culpa, pensei, é como esse projeto que agora desaba no chão: falta-lhe base para sustentar o peso do que foi mal construído. Respirei fundo, toquei seu braço e disse com sinceridade:

 

- “JR, a culpa não é o fim. Se eu te dissesse que ela anda de mãos dadas com a consciência, e que isso, de alguma forma, é bom, te aliviaria um pouco?” Ele, desconfiado, ergueu os olhos: - “Não entendi. Pode me explicar melhor o que quer dizer? E pode falar sem rodeios, por favor.”

 

Lá fora, o som distante de um martelo lembrava que tudo, cedo ou tarde, pode ser reconstruído. Depois de uma decisão mal tomada, é inevitável que um visitante bata à porta da consciência. E ele nunca vem sozinho. Traz consigo o remorso e o arrependimento: as fiéis sombras do erro.


Escute nosso podcast!




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Il. Arquitetura da culpa.


Mas o caminho da culpa não é de mão única. Há nele algo mais profundo, um paradoxo que raramente enxergamos no início: por trás da dor, existe também uma passagem que leva à liberdade.


Máquinas não se arrependem; robôs não conhecem culpa. Elas apenas executam comandos, sem dilemas, sem juízo moral. Talvez o peso recaia sobre quem as programou, mas nunca sobre elas. A culpa, então, pertence ao homem: é sinal e tormento exclusivos da consciência humana. Somente nós, humanos, carregamos essa angústia moral, porque nos foi concedido, e muitas vezes imposto, o dom e o fardo da escolha. E, se somos livres para decidir, somos igualmente livres para errar.


Sabemos que a culpa nunca surge do nada: ela nasce de uma decisão que cobra seu preço. Nesse sentido, não é castigo nem mera punição, mas prova de que ainda existe ética viva dentro de nós. Talvez ela seja uma das mais engenhosas arquitetas da evolução espiritual, pois chega pedindo reparo, derrubando o que foi mal erguido, para que se possa construir algo novo, mais sólido, íntegro e verdadeiro. Afinal, só sente culpa quem tem consciência. E só alcança consciência quem é livre, quem já experimentou a liberdade do espírito. A consciência, na verdade, não nasce; ela é eterna e sempre existiu. Apenas adormece em certas fases da vida, nas sombras da ilusão, aguardando o despertar pelo amor e pela verdade que tocam a alma.


JR permaneceu calado. Seu olhar se perdia em algum ponto invisível. Havia um silêncio espesso entre nós. Aquele homem, acostumado a projetar edifícios e erguer estruturas de ferro e concreto, parecia agora em queda, desabado dentro de si mesmo, com as defesas ruindo sob o peso da culpa.


A culpa se ergue dentro de nós como uma das mais delicadas e complexas arquiteturas da alma. Feita de pontes quebradas entre o que fomos e o que poderíamos ter sido, é capaz de nos mostrar a distância entre o que fizemos e o que deveríamos ter feito. Obriga-nos a encarar nossas falhas sem máscaras, aquelas que preferiríamos ignorar, com a sinceridade de quem reconhece: “Eu podia ter sido melhor.”


Se a olharmos em sua dualidade, veremos que, em seu lado mais luminoso, a culpa é o alarme da alma, o sinal que nos desperta para o que precisa ser visto e curado. Talvez o sofrimento seja esse primeiro sinal da cura: a dor que desperta e o arrependimento que amadurece. E o espírito, ferido, começa a crescer, desmontando o orgulho até que reste apenas a base sincera do arrependimento. É desse arrependimento, humilde e impotente diante do passado irreversível, que nasce o ponto de virada: “O que eu faço agora?” Aqui se ergue o verdadeiro divisor de águas.

 


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lII. O tempo em reconstrução. 


Se nos prendermos ao passado, usando a culpa como castigo, ela se torna prisão, alimentando ressentimento que afoga e paralisa, mantendo a alma aprisionada nas sombras do que foi. Porém, se escolhermos olhar para frente e transformar a culpa em força de reparação, ela abre ponte entre o que fomos e o que podemos ser, onde a dor pode se transformar em aprendizado e sabedoria.  


- “Então, meu parceiro”, disse JR, com voz cansada, “posso dizer que estou preso numa cela que me castiga e me consome. O peso me paralisa, e não tenho paz.”


A culpa e a paz não podem coexistir, pois uma elimina a presença da outra, como o escuro diante da luz. Quando acolhemos essa verdade, inicia-se o movimento da cura: reconhecer nossa fragilidade sem condenação. A alma, assim, retoma seu caminho, tornando-se aprendiz consciente da própria luz.


Diante do seu olhar desolado, respondi:

- “Talvez não seja uma cela, JR. Talvez seja uma porta que se parece com uma cela. Pode ser que você tenha se acostumado a ficar no sofrimento, a ponto de nem se lembrar de tentar empurrar. Coragem, JR. Empurre e abra a porta da alma. Talvez ela leve à sua liberdade.”


Um silêncio se instalou naquele momento. JR se sentia aprisionado, inquieto, incapaz de elaborar a própria culpa. O coração parecia envenenado por pensamentos que giravam em círculos. A mente desorganizada apenas estagnava sua energia psíquica e, sem compreensão, o campo emocional permanecia preso a um sofrimento contínuo. O arrependimento sincero estava ali, mas sem direção; o remorso havia se transformado em autopunição. De certa forma, ele se encontrava à beira de um adoecimento, uma paralisia espiritual gerada pelo peso de uma culpa punitiva, que apenas consumia, sem libertar nem ensinar.


 - “Mas como escapar dessa prisão?”, perguntou em desespero. “Como empurrar essa porta, meu amigo?”


A culpa é dolorosa, sim. Mas também é luz que irradia, sinalizando onde nasce o poder de uma nova escolha. Errar é humano. E, quando a culpa for bem compreendida, dela brota o impulso para aprender, reparar e recomeçar.


- “JR, pense nesta obra em que estamos trabalhando. Veja aqueles homens limpando os vidros: estão ficando belos, transparentes e cheios de brilho. Mas repare, lá dentro ainda há montes de entulho. Se ninguém abrir a porta, o entulho continuará lá. Assim também é com você. É preciso abrir a porta interior para que o passado deixe de ser prisão e se torne base para crescer. As feridas que carrega não se resolvem apenas punindo; agora elas precisam ensinar. Então, permita que sua dor seja reciclada e se torne lição.”  

                        

Quando aceitamos a lição que a dor oferece, a culpa pode deixar de ser apenas fardo. Muitos tentam fugir da culpa, buscando desculpas para se livrar dela. Mas uma vida totalmente ausente de culpa é perigosa; não é liberdade. É como um terreno anestesiado, dominado por um ego cego, sem limites éticos e alheio à responsabilidade pelos próprios atos. Quem nunca sente culpa é incapaz de revisar seus próprios passos e, por isso, conviver ou caminhar ao lado de alguém assim exige cautela. Quando bem compreendida, a culpa não paralisa; ela oferece direcionamento e aponta o caminho para o crescimento da alma.


- “Sabe, eu sei que ninguém é perfeito, mas errei demais. Ultrapassei todos os limites. Sei que não devia... mas aconteceu, então, não nego os meus erros. Tenho raiva de mim mesmo porque tomei decisões erradas, magoei pessoas que me amavam, agi com dureza e feri com palavras ofensivas. Não sei se tem como reconstruir minha vida.” E então, ele se viu diante da mais complexa de todas as obras: a inevitável reconstrução de si mesmo.


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lV. Auto perdão como caminho.


No caminho humano haverá sempre pedras, erros e escolhas ruins. Ainda assim, a estrada estará lá, esperando para ser retomada. Nem sempre conseguimos corrigir tudo o que fizemos. Existem erros que o tempo não devolve, deixando marcas que jamais se apagam. Porém, quando há reconhecimento lúcido, o erro pode deixar de ser sentença, e ser aceito como aprendizado. Sempre que possível, cabe a reparação ativa: reconstruir pontes, pedir perdão, alcançar o que ainda pode ser reparado. Não sendo possível reparar diretamente, ainda assim há algo a fazer: podemos canalizar a energia da culpa em serviço ao bem, ampliando e estendendo o amor que, aos poucos, dissolve as sombras da culpa e devolve à alma o sopro da paz.


A culpa cumpre seu papel quando nos desperta. Persistir nela após esse despertar é como negar o poder da luz que se infiltrou na escuridão. É como recusar a luz que já começou a iluminar o caminho.


O perdão: uma das chaves principais e mais profundas da alma, e talvez detenha em si o mais potente antídoto para a culpa. Ele carrega uma das forças mais difíceis de se movimentar, pois exige consciência e coragem.


- “Mas e quando o perdão do outro nunca vem?”, murmurou JR, com o olhar perdido e triste. Depois acrescentou, com voz cansada: – “Acho que só me resta carregar o sofrimento eterno... Além disso, carrego segredos que nunca tive coragem de revelar: traições, mágoas... talvez nunca receba qualquer perdão, nem da minha família.”


O perdão é uma ação direcionada àquele que foi ferido, seja uma pessoa, um animal, a natureza ou até uma comunidade, mas inclui, sobretudo e principalmente, o perdão a si mesmo. Esse talvez seja o mais difícil, porque está dentro, e não fora de nós. É sempre mais fácil e confortável apontar para fora do que encarar o próprio abismo interior.


O perdão que vem do outro é benção, mas o perdão que nasce dentro é libertação, porque nenhuma absolvição externa tem poder se a alma ainda se acusa.


O perdão verdadeiro, porém, vai além disso. Ele acontece quando reconhecemos, compreendemos e nos dispomos a reparar o erro, mesmo que simbolicamente, em forma de prece sincera, de serviço ao bem ou oferecendo ao mundo, com ternura e humildade, o amor que um dia possamos ter negado.  A culpa, paciente, espera pelo perdão sincero.

JR, ao começar a compreender e aceitar seu erro como parte da própria construção, pareceu sentir um leve respiro na alma. A vida é um processo de contínua reconstrução, no qual vamos amadurecendo ao compreender que o sentido está em refazer-se com consciência.


O perdão pode não apagar o passado, mas pode fazer dele um solo fértil, onde a consciência permaneça e floresça. Ele jamais será um prêmio que se recebe, afinal é um estado de alma que se conquista no profundo e consciente trabalho de libertar-se de si mesmo.


Na chegada do perdão, a culpa enfim se despede, por ter cumprido sua árdua e importante missão.



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