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Crônica #135 | A tecnologia da espiritualidade.

  • Foto do escritor: Redação neonews
    Redação neonews
  • há 1 dia
  • 8 min de leitura

O espírito que respira no coração digital.


Capa Crônica #135 | O espírito que respira no coração digital.
neOriginals Crônicas

O que você encontrará nesta crônica:


"O que significa ser humano em um mundo que digitaliza lembranças, sentimentos e experiências?  Seria a tecnologia inimiga, vilã ou apenas cenário de nossas escolhas? A espiritualidade, que vai além das fronteiras religiosas, manifesta-se como a dimensão da experiência humana que nos conecta ao mais profundo de nós mesmos: a busca pelo sagrado, pelo sentido e propósito que não cabem no material e se expressam no esforço de alinhar pensamento, sentimento e vida. O espírito humano resiste e respira no coração digital. Talvez aprender a cultivá-lo seja o grande exercício do nosso tempo."



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I. Memórias digitalizadas.


A decoração do restaurante era um mergulho no passado. Entre tantos objetos repousavam um rádio antigo, uma vitrola e um telefone de disco, testemunhas silenciosas que se mostravam como gigantes de outro século, diante da delicadeza dos nossos pequenos celulares atuais. Éramos familiares e amigos, filhos das décadas de 50 e 60, reunidos no costumeiro e doce saudosismo nostálgico.

 

Um dos presentes tirou da bolsa um gibi antigo, cuidadosamente encapado. Com um sorriso maroto, ergueu o gibi mostrando a todos, e risos e gargalhadas surgiram instantaneamente. Eu, ainda rindo, custava a acreditar naquela cena. O papel, já amarelado pelo tempo, parecia um passaporte para outra época. Foi o gatilho: o gibi virou um símbolo de lembranças, despertando antigas histórias guardadas da infância de cada um. Diante de todo aquele passado trazido ao presente, alguém comentou:


- “O que será que nossos filhos contarão aos netos e bisnetos?”

 

A pergunta ficou flutuando no ar, enquanto memórias continuavam a explodir em nossos corações. Depois de muitas risadas e de mais histórias, o silêncio que se seguiu não era um vazio; era curiosidade, talvez até uma inquietação espiritual, sutil e pulsante. Um menino de doze anos, neto de um dos amigos, debruçou-se sobre a mesa e disse, quase tímido:

 

- “Vocês ficam falando dessas coisas antigas e eu fico pensando... a gente também tem tudo isso, só que de outro jeito. O tio trouxe o gibi dele; eu tenho meus animês. Ele coleciona carrinhos; eu tenho carros virtuais de todos os anos e modelos. Aquela senhora tem um caderno antigo de receitas, mas, sério, hoje dá para achar receitas de qualquer coisa na internet, não precisa ficar escrevendo. A vovó, lá no canto, disse que tem uma coleção de livros Barsa. Não sei o que é, mas eu posso ter todos os livros antigos em várias línguas no meu tablet. Tudo o que vocês guardam com as mãos, eu tenho em arquivos, aplicativos ou na I.A. Acho que é muito mais legal e fácil.”

 

O menino nos olhava em silêncio, como quem esperava uma resposta. Nós, com nossos gibis, lembranças de rua e receitas escritas à mão, olhávamos para aquele pequeno porta-voz do presente, um verdadeiro espelho do tempo atual. O garoto tinha razão: com a tecnologia, o mundo foi digitalizado. Os avanços da I.A. organizam nossas lembranças, preferências, acervos e arquivos. Nosso mundo foi empacotado e armazenado em um arquivo do tempo, disponível ao toque de um dedo.

 

O contraste entre o objeto físico e o acervo virtual ficou estampado diante de nós, e pensamentos sobre liberdade e responsabilidade começaram a surgir nas conversas. Temos liberdade para escolher entre infinitos caminhos digitais, mas como decidir o que realmente importa em meio a tanta informação? Essa liberdade dá a sensação de controle, mas será que ainda conseguimos ser donos de nós mesmos e de nossas escolhas? Ou estaremos, talvez, apenas navegando no que nos é disponibilizado, sem perceber?

 

Um sentimento curioso, talvez uma mistura de alienação e pertencimento, surgia nas trocas de ideias. Era perceptível, nos olhos de todos, um ar interrogativo, típico de quem ainda preserva o privilégio dos encontros presenciais, vivos, cheios de risos e calor humano. Éramos filhos das décadas de 50 e 60, formados, portanto, no convívio direto e na voz ao vivo. Hoje, mesmo conectados às próprias telas que insistem em nos acompanhar, havíamos escolhido estar ali, inteiros, desfazendo o sentimento de solidão da presença fragmentada. Essa era a nossa identidade. A do menino parecia já feita de fluxos digitais. Enquanto os adultos se emocionavam nas conversas e risadas, ele gravava trechos no celular e lia para todos as legendas criadas pela I.A., como se aquilo fosse uma memória instantânea. Ali, privacidade e memória pareciam frágeis, expostas, com ou sem permissão. Naquele momento, ficou evidente o choque de gerações: os adultos guardavam lembranças pelo coração; o garoto, pelo registro digital.


Mas, afinal, de quem são essas memórias quando tudo fica armazenado em uma máquina?

 

O avô, sorrindo, disse:

- “A gente se sente excluído quando compara com o seu mundo, meu neto.”

 

Nós também expressamos a mesma sensação, cada um em suas próprias palavras, ao garoto, que parecia honrado por se sentir o rosto vivo dessa nova e inquieta geração. Ele tinha acesso a tudo. Nós, a memórias reais, não virtuais. Ele podia acumular ou registrar. Mas será que, nessas condições, é possível estar inteiramente presente, consciente, sentindo e vivendo? Nossas histórias não cabem apenas em arquivos digitais; elas respiram no olhar de quem as viveu.


Ali estava presente a memória sentida versus registro digital.


Escute nosso podcast!




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Il. O vazio do excesso.


Se antes o conflito era o dilema entre o ser ou o ter, agora é ter tudo à disposição sem necessariamente ser ou ter. E, sim, aquele garoto nos mostrava que hoje se vive no instante do acessar: tocar, olhar, deslizar, desaparecer. Antes, as pessoas eram, viviam, experienciavam; ou tinham, possuíam. Agora, apenas acessam. Suas memórias ficam suspensas na nuvem, e os afetos vão se dissolvendo entre os arquivos. Então nos perguntamos: onde ficam, afinal, a identidade, o pertencimento e as memórias verdadeiras neste mundo de acesso ilimitado e sem fronteiras? Hoje, tudo parece caber em um dispositivo, tablet, celular, arquivo na nuvem; um universo inteiro reduzido à palma da mão.

 

É curioso e inquietante observar que, se hoje temos tudo ao alcance de um clique, por que, estranhamente, o vazio do excesso nas pessoas é tão visível? Estaria aqui o ponto cego do nosso tempo? Temos de tudo, mas nem tudo nos pertence. Se tudo pode ser armazenado, registrado e acessado, o que é realmente nosso? O que não pode ser baixado, gravado ou deletado, mas vivido e sentido na pele?

 

Observando o menino mexer no celular, um espaço se abriu dentro de mim. Será que, hoje, as pessoas estão realmente transformando memórias em arquivos? Afetos em dados? E a espiritualidade, estaria ela se movendo, perdida ou apenas deslocada, navegando num território paradoxal entre o efêmero digital e a profundidade do sentir humano?

 

Fiquei a imaginar: se o nosso Criador permanece o mesmo, não seria cada um de nós, que precisa reaprender a se encontrar? E me perguntei como a tecnologia poderia servir à espiritualidade dos jovens, a exemplo daquele garoto. Para a geração que nasceu imersa no mundo digital, a espiritualidade se manifesta mais como experiência vivida do que ensinada. Eles buscam formatos que falem sua própria linguagem, formas de se conectar, de sentir autenticidade e de encontrar sentido.

 

Porém, o mundo vive tempos de idolatrias. A tecnologia, em seu avanço incessante, não se transforma, por vezes, em um ídolo moderno? Deixa de ser ferramenta e passa a ser objeto de devoção por si mesma. Não porque seja má, mas pelo excesso. Telas luminosas, que consomem horas contínuas de atenção e devoção, acabam sendo tratadas por muitos como deuses, às quais erguem, sem perceber, um altar. Onde depositamos nossa devoção? O garoto parecia sinalizar essa interrogação.


Ele me trouxe, naquele dia, não apenas o cenário estampado diante dos meus olhos sobre a questão das gerações, mas algo mais profundo sobre todos nós. A espiritualidade que buscamos hoje não pode estar separada das transformações do nosso tempo. Não podemos falar de alma sem considerar como vivemos, como lembramos e também como nos conectamos atualmente. Talvez precisemos redescobrir o ponto de origem, aquilo que permanece humano mesmo quando tudo vira arquivo, aquilo que resiste ao fluxo incessante de informações e nos mantém inteiros, a parte de nós que só cabe no coração.

 


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lII. A tecnologia da espiritualidade 


E então, sem demonizar nem endeusar a tecnologia, talvez devêssemos perguntar: que recursos ela pode oferecer a uma parte tão fundamental de nós, humanos? Ver a espiritualidade não como mais um aplicativo para instalar no celular, mas, em meio às notificações e conexões virtuais, reservar um espaço onde se manifeste o movimento íntimo de voltar-se para dentro. Reconhecer que ali repousa a espiritualidade, uma força que não se arquiva, não se traduz em dados nem se armazena em nuvem, um pulsar por baixo de todos os arquivos, que mora em um território que nasce da raiz e não da rede. Contudo, na rede dessa tecnologia, que pode dispersar e transformar a busca em consumo ou o sagrado em dado, também há aproximação: encontros virtuais, grupos de apoio, conteúdos e palavras de conforto, leituras inteiras para um caminho interior.

 

Ao pensar nisso, vejo os frutos luminosos que já se espalham pelo caminho humano. Tecnologias que tocam corpos e consciências, das cirurgias robóticas aos exames por imagem, dos aplicativos de saúde às próteses inteligentes. Das plataformas de ensino às bibliotecas digitais, das videoconferências aos tradutores instantâneos. A acessibilidade que amplia limites; casas automatizadas, carros elétricos e satélites na exploração espacial transformam nosso dia a dia. Quando usada com consciência, a tecnologia se expande em um cenário extraordinário, abrindo horizontes que, até então, pareciam inalcançáveis.

 

As facilidades de criar encontros que nutrem o ser, por meio do ter, são um privilégio. A tecnologia não é inimiga do espírito, pois, na correria e na falta de tempo dos nossos dias, pode servir de ponte na busca por sentido. São ferramentas preciosas que levam conhecimento e apoio onde antes havia isolamento. Porém, não dita a essência: abre caminhos, nutre e expande, mas ainda assim não substitui a experiência sentida, aquela que persiste, respirando no coração digital, onde o espírito humano se estabelece.

 

Já com as sobremesas e os cafezinhos sobre a mesa, senti-me revigorado, preenchido como observador daquele rico grupo, filhos dos anos 50 e 60, em pleno contraste com o único herdeiro dos novos tempos: o garoto. Um garoto que, mesmo com a irresistível taça de sorvete derretendo à sua frente, permanecia hipnotizado pela luz da tela do celular.

 

Minha mente ainda passeava por toda a mesa, percorrendo cada amigo ali presente, até parar naquele gibi esquecido no centro, sobre o qual parecia pairar um ponto de interrogação. O que havia entre aquele passado impresso, guardado nas páginas amareladas, e o olhar hipnotizado do garoto pela tela? Perguntei-me, então: entre arquivos e memórias, liberdade e algoritmos, entre o ser e o acessar, quem somos nós?


Precisava, naquele momento, silenciar o excesso, mergulhar naquele instante, sentir que a vida pulsa mesmo quando tudo está ao alcance de um clique, entre notificações e dados. Aprender a ouvir o coração em meio aos ruídos ao redor, e, sobretudo, ser inteiro quando o mundo insiste em nos fragmentar, acreditando no invisível verdadeiro, mesmo cercado pelo invisível virtual.


A espiritualidade não se perde na tecnologia; afinal somos mais do que arquivos, mais do que imagens compartilhadas. Ela está naquilo que não pode ser salvo em nuvem alguma, naquele espaço sem senha, sem login, onde mora a parte mais bela do que somos e do que realmente nos pertence, aquilo que só cabe no coração e resiste a qualquer tempo.

 

E, ao me despedir, olhei para o menino e para aquele grupo querido, sentindo que a espiritualidade, mesmo em tempos de tecnologia, não é um dado a mais. Ela não se perde no digital. Vive no ritmo do sentir, nas perguntas que não se encerram e na luz da consciência do ser.



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Time Crônicas





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Esta é uma obra editada sob aspectos do cotidiano, retratando questões comuns do nosso dia a dia. A crônica não tem como objetivo trazer verdades absolutas, e sim reflexões para nossas questões humanas.


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