Temperança na fonte do equilíbrio
I. A Senhora da persistência e determinação.
- “Bom dia! Como a senhora passou a noite?” Cheguei assim animado, naquela manhã ainda fria de primavera.
- “Consegui dormir bem, aliás, tive sonhos com algumas pessoas do passado.” Respondeu ela.
Já estava na varanda do quarto, sentada confortavelmente numa poltrona.
Do oitavo andar desse hospital, observava a chuva que persistira durante a madrugada.
Compartilha comigo as lembranças que os tempos de chuva deixara, quando da sua antiga vida, numa cidade do interior. Nos seus olhos transpareciam um longínquo infinito, que se perdia e se misturava às memórias que vinham brotando em palavras, criando em mim as imagens por ela emanadas.
Entregando a ela os óculos de leitura e os livros que havia me pedido, fui lhe dizendo:
- “Hoje a senhora receberá uma visita especial, das suas netas.” Ela sorriu alegremente.
De uma família numerosa de imigrantes, chegou jovem aqui no país. Cresceu numa fazenda colhendo café e cuidando dos irmãos. Semanalmente, eles ficavam na beira da estrada para vender batatas, feijão e milho, frutos da também colheita familiar. Em meio a tantas colheitas designadas pela vida, não faltou suor, mãos calejadas, e sabedoria que a trajetória foi lhe rendendo.
Após seu casamento, mudou-se para uma pequena e desconhecida cidade. Com uma máquina de costura, daquelas bem antiga de pedal, iniciou seu trabalho como uma simples costureira. Seu marido, um carpinteiro e também imigrante que se originara da roça. Na época, mesmo com poucas condições, financiou um caminhão para transportes de mercadorias. E então assim, através de muito trabalho e dedicação dos dois, compraram um terreno distante do centro da cidade, rodeado de mato alto, e com uma pequena trilha que ligava a uma avenida de chão batido. Através de muita disciplina, decididos e com o objetivo claro na mente, construíram uma casa de taipas com cinco cômodos.
Passaram-se anos, adquiriram mais terrenos e mais construções foram erguidas, e essas então, edificadas em alvenaria e destinadas a locações.
Persistência e determinação, dois poderosos e grandes aliados que fazem parte do processo de transformação, que nos levam à concretização de nossos sonhos. Diferente da teimosia, a persistência necessita de uma capacidade maior de entendimento, de limite e de realidade, tendo como base a força de vontade. Sem esses elementos de forças grandiosas, as conquistas não se solidificam, perdendo-se no meio do seu trajeto. Entre os orientais, uma expressão muito usada faz parte do dia a dia, sendo um estímulo que empurra para frente, incentivando a persistir e não perder a determinação do propósito, dizemos: - “gámbate!!” É realmente estimulante ouvir essa expressão, faz brotar uma grande força interior, trazendo à tona, a energia vibrante que ela carrega em si.
II. Crises e equilíbrio.
Seu rosto com poucas rugas, não aparentava sua idade avançada.
Tomando uma xícara de chá, relembra e comenta o sonho que tivera na noite anterior, com as pessoas que do outro lado do planeta viveram.
Por diversas vezes visitou essa sua longínqua terra natal, e não cogitava voltar a morar lá. A cada ida, os parentes e amigos iam diminuindo; e a casa em que nascera, jazia debaixo de uma via expressa de uma ferrovia. O rio em que antes nadava e brincava já não era o mesmo, suas margens não mais tinham plantas e árvores, e sim barreiras de concretos.
A vida se expressa em meio a todos esses ciclos, que se abrem e se fecham, se alteram conforme vamos nos movimentando. Revela-se muitas vezes, por trás e através de muitas crises, existenciais ou não, pequenas ou profundas.
As crises que sempre nos levam a uma reconstrução de possibilidades, que nos movimenta, e vindo sempre acompanhadas de muitos sentimentos a serem vividos. Os questionamentos que obrigam a sair em busca de respostas, o seu caráter sempre pedagógico faz avançar, se assim fizermos a devida leitura e estivermos dispostos a caminhar na estrada do crescimento.
Ela recebe mensagens pelo seu celular. Conseguiu acompanhar os avanços da tecnologia, e assim se comunicava também, logicamente que digitando as palavras na sua linguagem materna. Sua vontade de aprender sempre foi impressionante. O prazer da leitura fez a sua vida ser rodeada de muitos e muitos livros. Recebia periodicamente revistas importadas, e tinha o hábito de sempre escrever diário e poemas. No seu tempo de lazer, pintava quadros, tocava piano, confeccionava lindas bonecas japonesas, e assistia ao canal que transmitia notícias de sua terra natal. As habilidades envolvendo o trabalho com as mãos eram admiráveis, da cozinha ao artesanato.
A caligrafia japonesa, shodô, era uma verdadeira arte em suas mãos. Essa prática é muito exigente, requer paciência, disciplina e um estado de espírito calmo no seu desenvolvimento. Harmonia e equilíbrio interno, pois a escrita não pode ser corrigida, não há retoques ou esboços. Tem-se apenas uma chance de escrever. Qualquer erro ou imperfeição nos seus traços ou linhas, é necessário trocar o papel e escrever novamente. Busca-se nessa prática, um equilíbrio natural onde coexistam a expressão entre sutileza e intensidade nos traços das letras; residindo nesse composto o sentido estético de uma peça de shodô.
Shodô (書道), significa caminho da escrita. É uma arte tradicional bastante apreciada pelos japoneses, remonta ao século VI, e vai muito além de apenas escrever com beleza os caracteres ou as palavras. Sua verdadeira essência é escrever com o coração, onde nele se expressa a alma e mente numa profunda sintonia. Através dos traços da escrita, pode-se ver manifestada as emoções ou mesmo a personalidade do artista; tal profunda é a sua expressão.
Muito praticada pelos monges do Zen Budismo, no desenvolvimento de seus ideais e valores. Para o filósofo japonês, Nishida Kitaro, não se domina o shodô somente com uma constante prática. Afirma ele, que no momento dessa caligrafia a mente deve estar vazia, buscando um estado de espírito a que chama de mushin (無心), um estado de consciência sem consciência. Com leveza, mente vazia e concentração no significado das palavras, os caracteres devem fluir sem esforço. Ferramenta interessante para os que se identificam com essa arte. Simples, mas profunda como a vida se apresenta a cada um de nós. Para que o caminho, o trajeto seja leve e feliz, será necessário muito equilíbrio. Assim, um fluir harmonioso poderá se manifestar, pelas interpretações e ações corretas de nossas mentes e corações. As consciências se expandem, acompanhando naturalmente, o fluxo da vida.
E ela, ainda sentada na varanda do seu quarto, começou a recitar poemas. Poemas de alegrias, de reflexões, da sapucaia florida, que despontava na avenida de movimentação intensa dessa capital. Dando vida à natureza de forma espontânea, leve e suave como a brisa da primavera, que com o ar da sua graça já se mostrava pelos cantos da cidade.
Em meio aos muitos assuntos que iam e vinham, ela constrói um belo poema em que citava o passado, mas ressaltando o valor supremo do presente, trazendo o equilíbrio como base de uma saudável longevidade. Havia completado seus 99 anos, com alegria e muita lucidez.
- “Como podemos ter equilíbrio nesse mundo tão hostil e repleto de antagonismos?” Bruscamente questionei em face de suas colocações.
- “Veja o exemplo dos estados físicos da água, gelo ou vapor, ou simplesmente água no seu estado líquido.” Os estados extremos são necessários e úteis, e nos levam a reconhecer o seu ponto de equilíbrio. Nesse caso, o estado líquido. Muitas vezes, nossas vidas nos levam a vivenciar os estados extremos de situações. E pelos resultados desses extremos, percebemos o quanto não são nada saudáveis. Nem muito lá, nem muito cá. Ao conhecermos os extremos, aprendemos a reconhecer o verdadeiro valor e o sentido do ponto de equilíbrio, de vital importância à nossa saúde, seja ela física, mental ou emocional.
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III. A temperança.
Eu a visitava todos os dias no hospital, e ficava como acompanhante durante toda a noite. Percebia que ela não exaltava sua dor, tentando amenizar o quanto conseguisse. Um dia, talvez pelo sofrimento que ela estava passando no ambiente hospitalar, frente a um tanto de medicamentos, me perguntou:
- “Sabe o que dá equilíbrio entre dor e prazer?”
Calado fiquei ouvindo...
- “É a temperança, uma palavra esquecida ou considerada fora de moda nos dias atuais, é ela que fica entre a dor e prazer. Coisas boas são prazerosas, claro! Porém, a entrega sem limites ao prazer também leva às suas consequências, muitas vezes decepcionantes e até marcantes para o resto da vida. Você se lembra de um dos nossos vizinhos, que se entregou ao vício da bebida alcoólica? Chegou ao ponto extremo de confundir o prazer que lhe proporcionava, com a dor que ficava. Viveu até o fim de seus dias no limite dessa dor e prazer, tendo como ponto central o sofrimento, seu e de sua esposa e filhos. A temperança regularia os excessos e as carências.” Falou pausadamente.
Os extremos estão fadados a exterminar o equilíbrio, desestruturando os alicerces, e abalando os pontos vitais de uma vida harmoniosa.
Temperança é uma virtude pouco comentada, traz consigo o importante elemento do equilíbrio, onde despontam junto a ela muitos outros princípios. Ela costuma gerar e trazer consigo a paciência, a prudência, a moderação através do reconhecimento, facilitando o discernimento dos limites a serem respeitados. A temperança exige de nós o autoconhecimento, saber quem somos para assim nos posicionarmos diante das escolhas e das atitudes. Posicionar-se e temperar em cada atitude da vida. Fazendo crescer em face disso a fortaleza, tornando as pessoas que a possuem, mais senhoras de si. A fortaleza que questiona se dominamos ou somos dominados. Entrando no domínio onde cresce a força e o poder sobre os impulsos, as paixões ou tentações, desejos e vontades, onde se entende, respeita, e impõe os devidos limites necessários a um salutar equilíbrio. Muitas vezes falta domínio sobre uma simples alimentação, onde um apetite desordenado leva à gula, e a gula se transforma em distúrbios variados, comprometendo não só a saúde física, mas toda a saúde que envolve uma vivência feliz.
A temperança é um elemento, de indispensável importância, no crescimento humano.
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IV. O presente dia.
Na parede do quarto havia um quadro pintado a óleo, e um lindo vaso de flores que recebera na visita de uma amiga, alegrava também um pouco mais o espaço.
O seu chá estava pouco tocado.
Os movimentos repetitivos das luzes, os números e gráficos dos aparelhos hospitalares, ao mesmo tempo que pareciam estar em contraposição ao equilíbrio do ambiente, traziam um certo alívio à nossa mente concreta, ávida por indicações que sinalizassem um parâmetro de normalidade. No seu pulso esquerdo uma tarja de identificação. E ela, com um semblante calmo, lia um livro.
Era um feriado, e cheguei mais cedo para estar com ela. Não adepta a ar condicionado, estava a janela aberta, fazendo invadir o ar fresco daquele dia de primavera. Nesse dia, parecia o silêncio imperar. Não se ouvia sirenes de ambulâncias, bombeiros ou policiais, apenas um som leve e longínquo de carros; que teimava em permanecer para impedir uma completa paz, dentro dessa gigante cidade que parecia adormecida.
Fechei a janela da varanda, apaguei as luzes, deixando apenas uma iluminação inferior acesa.
Apesar do silêncio da noite, a minha mente insistia com seus ruídos. Lá fora, a lua se mostrava na fase crescente, ofuscada levemente pela neblina. A luz dos postes do estacionamento, lá embaixo, iluminava os poucos carros estacionados. Uma música distante, talvez de algum bar, quebrava a melodia com algumas gargalhadas. Reinava lá uma certa folia, em um oposto contraste, com o ambiente em que eu estava, naquele momento, inserido.
Essa foi a última noite que passei ao lado dela, a quem tive o privilégio nesta vida, de estar como seu filho. Minha querida mãe, uma verdadeira Senhora de si, com seus belos olhos negros a brilharem como pedras de ônix. Sempre muito determinada e rigorosa na educação de seus três filhos, deixou pelo seu exemplo de vida, dois grandes legados: os princípios e o amor.
A reverencio com meu respeito, amor, e profunda gratidão!
A transitoriedade da vida nos traz despedidas, vivemos em meio ao efêmero a ao perene.
Reconhecendo que estamos, todos, sob o domínio da Vida, que de forma sábia Ela nos conduz nas idas e vindas, permanecemos certos da alegria de novos reencontros.
# Dia 18 de junho, comemoramos o dia da imigração japonesa no Brasil. Deixamos aqui nossa homenagem a todos os imigrantes, que como meus pais, perseveraram neste grande país.
Sonhos de outrora, onde a esperança de um dia retornar triunfante aos amigos e parentes, ficaram marcados e confinados nas cartas trocadas. No vai e vem de esperanças e lembranças, a Vida lhes ensinou que tudo prossegue, mesmo e além de qualquer saudade.
Com fé, e honrando a determinação pela escolha, aqui resistiram, aqui ficaram.
Parabéns a todos os guerreiros imigrantes!!
Esta é uma obra editada sob aspectos do cotidiano, retratando questões comuns do nosso dia a dia. A crônica não tem como objetivo trazer verdades absolutas, e sim reflexões para nossas questões humanas.
Confira a última crônica da nossa coleção - Crônica #83 | O Fantasma da Ópera.
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Que tal baixar e compartilhar trechos dessa crônica com a galera?
Você já conferiu o último vídeo do neoPod lá no YouTube do Portal?
Nosso cronista Otavio Yagima fez uma participação especial, e o encontro está imperdível; confira no player aqui embaixo e também visite as demais postagens no YT da neo!
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