Crônica #130 | A decisão.
- Redação neonews
- 1 de jul.
- 9 min de leitura
Atualizado: 2 de jul.
Traçando as linhas do próprio mapa.

O que você encontrará nesta crônica:
"Tem dias em que a vida se parece com uma gangorra vazia, esquecida ao sol. E o silêncio pesa mais que qualquer ausência. Você já tentou mover a vida sozinho? Essa crônica não é sobre brinquedos. É sobre escolha, decisão e aquele instante decisivo em que o medo não desaparece, mas mesmo assim, você vai. O que fazer quando o mundo não se move com você? Ficar parado? Ou dar o passo sem chão, se lançar, sem manual, garantias ou promessas? Você é daqueles que espera que alguém venha equilibrar sua gangorra, ou já aprendeu a sustentar o próprio peso da vida?"

I. As tentativas.
Na linha da dualidade, podemos dizer que vivemos na corda bamba, em eternos e constantes movimentos de sobe e desce: ora puxados pelas razões, ora levados pelo infinito campo das possibilidades. Parece filosófico demais? Pode ser. Mas me deixa contar o que vi num dia desses.
Era um final de semana comum, desses em que tudo se movimenta para levar nossos pets a uma caminhada pelo condomínio. Distraído nos meus próprios pensamentos, me vi perto do parquinho reservado às crianças. Lá, uma jovem mãe dividia sua atenção entre o celular e um carrinho de bebê, enquanto um pequeno cãozinho Yorkshire, dono de si, explorava os arredores. Mas minha atenção maior se desviava para um garotinho de uns cinco anos, que brincava perto da gangorra. Havia algo naquela cena. Sozinho, sem ninguém do outro lado, o menino insistia num brinquedo que, por natureza, pedia dois.
Ele subia em um dos lados da gangorra, dava impulsos com os pés, tentava se erguer, mas mal saía do chão. Claramente, sua elevação não ultrapassava mais que alguns centímetros. Descia, corria até o outro lado e repetia o processo. Sobe e desce. Sobe e... desce.
Fiquei parado, observando sua ação. Intrigado, confesso. Sua persistência me capturou. Havia ali uma mente em experimentação, sem fórmulas, sem manuais, apenas ação pura. Queria entender e saber qual era o seu raciocínio, qual seria a conclusão. O que se passava pela sua cabecinha de criança? Parei minha caminhada. Me veio nos pensamentos as tantas vezes em que tentamos dar sentido ao vazio do outro lado, insistindo nos impulsos, acreditando no invisível. E seguimos, como aquele garotinho, como que brincando com a esperança.
Não havia nenhum traço de frustração em seu rosto, muito menos de tédio. Havia foco. Ainda que sozinho, ele parecia determinado a fazer aquela gangorra funcionar. Parecia acreditar que, de algum modo, o brinquedo responderia à sua teimosia. Pensei que talvez, em sua lógica infantil, e por que não dizer, genial, ele imaginasse que o movimento de um lado acabaria empurrando o outro. E ele brincava de gangorra consigo mesmo, com todo o seu esforço e imaginação.
Que maravilhosa metáfora viva da vida! E eu estava ali, naquele instante, pessoalmente, diante dela. Quantas gangorras tentamos mover sozinhos, esperando que o outro lado se levante? Pensei nas tantas vezes em que corremos de um lado ao outro, tentando alcançar um equilíbrio pelo peso das escolhas, dos desejos, dos medos e, por que não, das nossas emoções também?
Ali estava aquele garotinho, no vai e vem da infância, ensinando, sem querer, que a vida muitas vezes é isso: insistir no movimento, mesmo quando tudo parece parado. Com a ousadia dos que ainda não foram ensinados a desistir antes de tentar. Às vezes, na repetição insistente, quase teimosa, dos nossos gestos mais simples é que encontramos novos significados. E quem sabe, no meio de tantas tentativas, a gangorra finalmente funcione, atraindo alguém que se sente no outro lado? Até lá, seguimos, entre razões e possibilidades, no sobe e desce do existir, buscando o ponto de equilíbrio dentro de nós. Não resisti: fui lá e sentei-me ao lado da jovem mãe. Nos apresentamos trocando rápidos sorrisos. E, logo, ela voltou sua atenção ao celular.
Enquanto os pets se conheciam, ela, de repente, rompeu o silêncio com impaciência, repreendendo o filho: - “Seu bobo, você nunca vai conseguir se balançar sozinho! Gustavo! Vai brincar no gira-gira ou no balanço, menino!”
Mas Gustavo, o garoto, não deu ouvidos. Permanecia firme em sua missão “gangorrística”. Seus movimentos repetitivos começaram a deixar sua mãe impaciente. Até que ela ameaçou se levantar.
- “Deixa!”, pedi, antes que ela tomasse a frente. “Vamos só observar e ver o que ele decide. Talvez ele ache alguma solução!” Meio sem entender, ela me olhou e aceitou. Afinal, eu estava ali e, de certa forma, auxiliando.
Gustavo, num determinado momento, foi para o gira-gira. Subiu e começou a girar lentamente. Parecia observar atentamente o movimento giratório, vendo as árvores correndo ao seu redor. Pela idade dele, eu nem me atreveria a falar sobre as forças físicas atuando em seu corpo. Nessa fase, bastava sentir. E ele sentia. Com os olhos bem atentos, à medida que a velocidade aumentava, parecia captar algo que a física ainda não nomeava para ele. Quando parou, cambaleou levemente e deixou aquele brinquedo.
Seguiu para o balanço. Lá ia Gustavo, menino muito ativo. Iniciava o movimento de vai e vem pendular, parecendo, finalmente ter encontrado um tipo de harmonia. Sentia as duas forças da física: a energia cinética e a energia potencial. Ele não sabia os nomes, mas o corpo entendia. Dava a impressão de que ele sentia a gravidade quase zero no ponto mais alto, sendo empurrado e puxado enquanto ganhava impulso. Ainda assim, seus olhos voltavam, insistentemente, para a gangorra.
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Il. No ponto de equilíbrio.
E então aconteceu: Gustavo desceu do balanço, pisou firme no chão e voltou para a gangorra. Mais uma vez, lá estava ele. Era sua terceira tentativa. Mas, dessa vez, algo parecia ter mudado. Ele não foi direto para as extremidades, nem repetiu os mesmos gestos. Parou. Observou com atenção. Levantou a parte que estava no chão e seguiu em direção ao centro da gangorra. Soltou. A gangorra pendeu para o outro lado. Então, deitou-se sobre o braço da gangorra. Cautelosamente, começou a se arrastar em direção ao centro do eixo. Ops... ele notou que a gangorra começava a se mover para o lado oposto. Moveu-se lentamente para o outro lado. Gustavo se assustou, recuou, e o movimento cessou. E ali estava ele, surpreso entre o susto, a descoberta e o controle que precisava manter. Não mais correndo de um lado ao outro, mas tentando entender aquele ponto de equilíbrio.
Observei em silêncio. Quanta coisa cabia ali, naquelas atitudes daquela criança. Diante de nossos olhos, ele aplicava a lógica dos corpos e das forças sem sequer saber seus nomes. Se observarmos, é assim que acontece: a vida não nos entrega manuais. Os sinais são sutis.
Quando empurramos decisões para o futuro, podemos sem perceber, ficar no conforto da dúvida, e é aí que ela nos oferece rotas de fuga, uma falsa proteção, adiando o enfrentamento. Ou optamos por agir, ou ficamos parados, esperando que algo mude por si só. Enquanto não escolhemos, outras indecisões surgem, às vezes, ainda mais pesadas. Decidir, portanto, é colocar um ponto final em algo, e isso abre espaço para o novo. É abrir mão do conforto da dúvida e enfrentar o risco da escolha.
Talvez seja um ato de coragem e autoconhecimento. Talvez seja o momento em que deixamos de apenas existir e começamos, de fato, a viver. Decidir, exige comprometimento e lembrando que errar faz parte do processo de se tornar humano.
Como tão belamente nos ilustrou o pequeno menino, por meio da experiência e da persistência em movimentar a gangorra sozinho, podemos dizer que o crescimento humano acontece pela vivência, pela tentativa, pelo erro e pelo aprendizado pessoal. Não conseguimos simplesmente viver apenas aplicando fórmulas ou conselhos prontos. No processo das experiências vamos, pouco a pouco, nos transformando.
Naquele instante, nem era mais sobre a gangorra. Meus pensamentos foram longe o bastante para questionar nossas buscas. Sobre como buscamos equilíbrio sem entender muito bem onde começa o verdadeiro movimento. Sobre como, muitas vezes, nos movimentamos em direções opostas, esperando que os resultados se encontrem no eixo.
- “Filho cuidado! Você vai cair!”
Minha mente foi subitamente interrompida pelo alerta em voz alta da mãe de Gustavo. A mulher, que até então dividia sua atenção entre a tela e o mundo real, deixou o celular cair. Seus olhos, agora atentos, estavam ali, presentes, inteiros, voltados para o filho. O celular, deixado ao lado, já não parecia urgente. Estaria ela, naquele instante, também buscando seu próprio ponto de apoio?
- “Não se preocupe, mãe. Seu filho está fazendo uma grande descoberta. Da física e da matemática, não pelas fórmulas, e sim pela ação. Ele acreditou que podia mover a gangorra se entendesse o ponto certo, e foi exatamente isso que acabou fazendo. Pela tentativa e erro, é obvio, mas ele conquistou. Foi persistente, ousado e corajoso.”
- “Mas ele é muito teimoso...”, disse ela, em tom quase cúmplice.
- “Calma... estamos por perto. Se houver perigo, a gente entra em cena. Até agora, ele não pediu ajuda, e não precisamos ainda interferir nas decisões dele.”

lll. A vitória no gesto simples de não desistir.
A mãe deixou escapar um leve sorriso, e minhas observações seguiram em um silêncio confortável. Senti que não apenas a gangorra, mas algo a mais havia se deslocado. Aquele menino determinado, pequeno e imenso em suas tentativas, não esperou que alguém resolvesse o desafio por ele. Tentou, observou, refletiu, ajustou sua estratégia e, acima de tudo, escolheu continuar tentando.
Havia entendido com o corpo o que a razão levará anos para traduzir. Descobriu que o centro nem sempre está onde imaginamos. E o equilíbrio, muitas vezes, se alcança de maneira não antes prevista. A vida não nos leva, vez ou outra, a confrontos com situações em que ninguém pode escolher por nós? Você concorda que é justamente nesse ponto que a maturidade começa a nascer?
- “Olha mamãe! Eu consegui!”, gritou o menino, com os olhos brilhando.
Gustavo, mesmo com seu pequeno corpo, distribuiu o peso no centro da gangorra, equilibrou as forças e mostrou, de maneira fenomenal para sua idade, que podia mover o mundo com seu próprio centro de gravidade. Não houve plateia. Só eu, ali, com os olhos marejados e o coração em festa, o aplaudi. Por ele, que venceu sozinho, com a leveza dos que ainda não temem o erro. E por mim, que entendi: há momentos em que a vida inteira cabe no gesto simples de não desistir.
Naquela tarde, Gustavo nos deu, sem perceber, uma das maiores lições: a decisão. Mesmo com os alertas da mãe sobre uma provável queda, ele continuou ali, firme, desafiando a autoridade materna. O mais importante naquele momento não era obedecer ao sim ou ao não da mãe. Era escolher. Era decidir. Ele não pediu ajuda. Ele decidiu. E, com esse gesto, aprendeu algo que muitos adultos ainda evitam: decidir é assumir a si mesmo.
Gustavo ainda é pequeno demais para compreender que toda decisão carrega um peso. E assumir responsabilidade não é leve. Às vezes, é carregar o mundo nos ombros por um instante... ou por uma vida. E decidir, sabemos, não é nada fácil, exige coragem. É correr riscos, é sair da ponta confortável da dúvida e buscar o ponto de equilíbrio. Não é apenas escolher entre caminhos; é o instante em que o ser humano reconhece sua liberdade e, com ela, a responsabilidade.
Como dizia Sartre, filósofo existencialista francês, “não somos apenas aquilo que fazem de nós, somos aquilo que escolhemos ser.” Para ele, a liberdade humana está justamente na capacidade de decidir quem queremos ser, mesmo diante das circunstâncias que nos cercam. Toda escolha verdadeira exige renúncia: ao escolher um caminho, deixamos outros mil para trás, e há dor nisso.
Decidir deixa de ser apenas um ato racional; é um mergulho existencial, um pacto com a responsabilidade que a escolha impõe. Cada decisão traça as linhas do nosso próprio mapa. E sim, muitas vezes, escolher dói; e uma decisão pode ser amarga. Enquanto não decidimos, porém, mantemos abertas todas as portas, alimentando a dúvida; essa que, ao longo do tempo, vira paralisia. Esperar demais pode parecer prudente, mas também pode ser uma prisão disfarçada de segurança, que se transforma em peso. E o tempo, esse juiz silencioso, nunca avisa quando vai encerrar o julgamento, apenas avança, cobrando o preço da nossa indecisão.
Gustavo aceitou um desafio silencioso, imposto não por alguém, mas pelo impulso interior de superação. Esse tipo de movimento não é herdado, nem ensinado. É conquistado. Porque toda conquista autêntica brota de dentro. É nesse ponto, quando a persistência quase teimosa de um gesto pequeno revela a potência da vontade interior, que algo em nós se desloca.
E, então, uma pergunta nos alcança: qual postura escolhemos adotar diante da vida? A de protagonistas, que assumem a autoria da própria existência, ou a de vítimas, que terceirizam o enredo aos acasos ou aos outros? Responsáveis ou acusadores do mundo? A forma como caminhamos diz tanto quanto o caminho que escolhemos.
Gustavo decidiu: enfrentou a gangorra solitária e viveu a plenitude que nasce da vitória sobre um desafio superado.
Decidir, afinal, não seria o movimento que nos liberta da mera sobrevivência e nos lança na verdadeira arte de viver?
Estamos prontos para, enfim, escolher viver?
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Esta é uma obra editada sob aspectos do cotidiano, retratando questões comuns do nosso dia a dia. A crônica não tem como objetivo trazer verdades absolutas, e sim reflexões para nossas questões humanas.