Crônica #129 | Quando tudo parece fim.
- Redação neonews
- 17 de jun.
- 9 min de leitura
Atualizado: 18 de jun.
Você se sente descartado? Ou pronto para renascer?

O que você encontrará nesta crônica:
"Já se sentiu prestes a ser descartado pelo mundo?
Como uma talhadeira enferrujada ou uma espada esquecida na pedra?
Às vezes, é o fogo certo que desperta o que parecia perdido.
Não é força que falta, é sintonia.
Talvez o renascimento da alma comece no som sutil de algo que ainda pulsa.
Ainda há tempo.
Ainda há fogo.
Ainda há propósito.
Você se sente descartado? Ou pronto para renascer?"

I. Quebrando a alma.
Na rotina de uma obra, costuma-se seguir um compasso exato: do vai e vem das ferramentas ao barulho das máquinas ao fundo. Tudo tem prazo e função. Usa-se, desgasta-se e, então, segue-se o protocolo: manutenção, se ainda vale a pena; descarte, se o conserto não compensa. É o ciclo natural ou, pelo menos, é o que se espera. Mas nem tudo segue a frieza dos manuais técnicos.
Aconteceu que, numa certa manhã, um som me desviou da pressa corriqueira. Caminhava por um longo corredor quando o mestre de obra veio na direção oposta, com um ponteiro e uma talhadeira nas mãos, batendo um contra o outro. Marcava o compasso dos próprios passos com as batidas rítmicas, enquanto assobiava uma alegre melodia.
- “Vai levar o ponteiro e a talhadeira para algum setor?” – perguntei.
- “Não, senhor. Tô levando pro descarte.” – respondeu com naturalidade.
- “Posso ficar com elas? Vou tentar recuperar e, se não der certo, eu mesmo dou baixa!”
Ele apenas assentiu com a cabeça e prosseguiu caminho.
Peguei as ferramentas nas mãos. Sim, estavam mesmo desgastadas. O ponteiro perdera parte da extremidade, e a talhadeira já estava sem o fio de corte. Eram, tecnicamente, sucatas.
Entretanto, não foi o estado físico que mais me interessava, e sim a pureza do som que produziam.
Era quase música. O som agudo e grave, com timbres distintos, revelava sua identidade conforme o seu formato e o peso. O eco, ouvido nas batidas à distância, era consistente. Às vezes, soavam como sinos em miniatura; em outras, como o de um triângulo musical.
Na rigidez daqueles metais, havia história. No peso, memórias de resistência. As cabeças marcadas mostravam as tantas vezes em que foram golpeadas. Quantas paredes ajudaram a romper, quantas pedras brutas tocaram até revelar formas artísticas. Pois sim, algumas serviram ao bruto do concreto e outras, com mãos mais delicadas, esculpiram o granito. Talvez fosse mesmo mais prático jogar fora o que não serve. Mas, naquele dia, percebi que certas ferramentas falam, obviamente, não com palavras, mas com sons que carregam a memória de tudo o que já construíram. E foi uma espécie de lição sentir que aqueles instrumentos, mesmo gastos, ainda tocavam alguma coisa dentro de mim.
Levei as ferramentas para Raimundo, o ferreiro da região. Um homem que trabalhava à moda antiga, entre carvões e marretas. Então, ele alimentou o fogo com calma e fé e, alguns minutos depois, as chamas ganharam corpo. Sem equipamentos de proteção, confiando na dança entre o fogo e o aço, ele introduziu as peças cuidadosamente. Elas ficaram vermelhas, quase brancas, no braseiro. E então, sobre a bigorna, as pesadas marretas desciam, batendo em golpes ritmados.
Enquanto esperava, sentei-me sob a sombra de um belo ipê-roxo florido. Ouvia o som das batidas sequenciadas das marretas. Cada golpe reverberava dentro de mim, e pensei em quanto a matéria se transformava em instrumento e minha existência ali, em consciência. E, entre o meu silêncio e o ritmo, fui sendo tomado por um pensamento que se aprofundava: será que não seria assim também com a alma? Quebrando-se em golpes para se tornar inteira?
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Il. A espada Excalibur.
Quando Raimundo me devolveu a talhadeira, era evidente que algo havia mudado. A peça, antes sem fio, trazia agora as marcas do fogo intenso e das fortes pancadas. Mas estava perfeitamente afiada, refeita. E, agora renascida, descansava em minhas mãos. De fim, tornara-se recomeço, pronta para mais uma etapa de vida. Aquela peça que seria descartada agora reluzia, obviamente não em brilho, mas em potência silenciosa. Foi então que minha mente, sem que eu percebesse, foi levada a uma antiga e poderosa imagem: a espada Excalibur.
Muito além da mitologia medieval, a lenda do Rei Arthur é uma história que atravessa o tempo não apenas por sua beleza, mas porque fala diretamente à alma. É o estigma de um símbolo cósmico de uma jornada interior que todos nós, em algum momento, somos chamados a percorrer. A pedra bruta, rígida e fria, representa a rigidez das ilusões, das crenças endurecidas que acumulamos ao longo de nossas vidas. É a rocha que, às vezes, são os medos; outras vezes, o orgulho; e tantas vezes, sombras obscuras e limites autoimpostos. A espada, por sua vez, vem como a justiça, a verdade e a clareza cortante que emergem apenas quando superamos os bloqueios internos, alinhando-nos com o que realmente somos de fato.
Não sei exatamente por que, mas aquela imagem da espada cravada na rocha me acompanhou o dia inteiro, provocando um silêncio aceso por dentro. Penso que foi por ser enigmática; não tanto por sua imponência, mas pelo que poderia realmente sugerir. Ela me trazia a representação de um forte símbolo de poder, algo que já me tocava antes mesmo de eu compreendê-lo em profundidade, pois ela não estava ali apenas à espera de força bruta.
E percebi algo mais profundo do que a força: percebi a espera daquela espada, imóvel e silenciosa. Um silêncio intencional. Afinal, dizia a lenda que ela só poderia ser retirada da pedra por quem estivesse em harmonia com sua essência, vibrando na mesma frequência autêntica da nossa natureza divina. Nenhuma demonstração de força bruta surtiria qualquer efeito. Nenhum esforço físico bastaria. Ela esperava sintonia, simplesmente e apenas vibração semelhante. Apenas verdade.
E foi justamente essa necessidade que mais me comoveu: a exigência de sintonia. Ela se abriria somente a quem vibrasse na mesma frequência que ela, e isso não seria para qualquer um. Seria para quem já tivesse encontrado, dentro de si mesmo, aquilo que também a habitava. A espada recusava ser vencida por qualquer força bruta, mas se abriria àquele que se alinhasse com a própria verdade. Poucos percebem, mas, nesse gesto, existe um chamado da alma.
E a vida, afinal, não nos diz exatamente a mesma coisa? Que a verdade não se entrega à força, mas à sintonia? Que se revela na frequência de um coração verdadeiro? Quanta simplicidade e, ao mesmo tempo, quanta complexidade! Afinal, quantos de nós estão realmente prontos e dispostos a se colocar nessa sintonia? É fácil? É complexo? Não estaria aqui um grande segredo?
O cenário mundial que se apresenta ao nosso redor nos causa uma incômoda, porém real, sensação: vivemos em um mundo cada vez mais perdido. Perdido em excessos, em ego demais, em muitas distrações que apenas nos esvaziam e, muito pouco enraizado na direção certa. Afinal, em meio a tantos ruídos, uma avalanche de falsos valores aprisiona a mente na superfície, onde quase nada é essencial, porém tudo parece urgente. Muita gente vive apenas apalpando a casca de uma vida que poderia ser profunda.
E então, nós? Onde nos encontramos no meio de todo esse caos?
Nós nos misturamos, perdidos e esquecidos da própria alma? Ou conseguimos nos erguer para enxergar algo um pouco além? O mundo grita por direção. Grita, já emitindo um forte alerta. E talvez não haja mais tempo para postergar o que é inevitável: é mais que chegado o tempo de despertarmos do nosso longo exílio de nós mesmos.
Um chamado emerge de um mundo que já não suporta mais máscaras.
Um reencontro com o que nos conecta ao conhecimento que expande, ao autoconhecimento que revela, e a uma alegria verdadeiramente autêntica. Naquilo que pulsa a vida, na prática do bem que ancora o sentido de estarmos aqui, reside nossa real missão. Nós não somos apenas o que restou do mundo. Nós somos o que pode, de fato, reiniciá-lo.

lll. O fogo sagrado.
Aquela talhadeira, prestes a ser descartada por parecer inútil, foi despertada para a potência ao ser tocada pelo fogo e conduzida por um propósito. Bastaram o fogo certo, a marreta certa, o tempo certo, e aquilo que parecia fim transformou-se em reinício. Tal qual essa ferramenta, temos muitas partes de nós que parecem gastas, sem utilidade, esperando o descarte ou, quem sabe, o seu correto despertar. Basta também, para isso, o fogo e o olhar certos, para que o fim se transforme em renascimento.
A vida parece mostrar que não é mais força que nos falta, nem mais velocidade ou dureza. Ela pede fogo, mas não um qualquer. Necessário é, que não seja aquele que destrói e consome em fúria, mas o que venha purificar. Qual seria o fogo certo que nos falta, o que poderia nos transformar?
Nossas vidas clamam por um fogo que toque a alma, que ilumine por dentro. Um fogo que não se vê com os olhos, mas que é reconhecido de imediato pelas nossas almas, ardendo como um chamado, como uma verdade que não se pode mais adiar.
De onde viria esse fogo?
Porque, quando esse fogo nos toca em profundidade, não apenas a matéria é mudada.
É a nossa alma que se dobra, que repensa e se transforma, lembrando-nos de quem somos antes das máscaras, antes da pressa deste mundo; queimando o que é mentira e acendendo o que é verdade. E, nesse calor, o que era sombra começa a se dissipar, clareando até o que escondíamos de nós mesmos; não como punição, mas como libertação. Então, no silêncio do nosso íntimo, nos diz que fomos feitos para brilhar com sentido, não para apagarmos no vazio.
Qual parte de nós está esperando por isso? Qual ponto gasto, esquecido ou endurecido dentro de nós clama por um calor que não queima, mas renova? Devolvendo-nos assim, a lucidez e a leveza de sermos, enfim, mais inteiros, mais humanos, mais felizes? Talvez, então, a grande busca não seja por respostas, mas por esse fogo interior que, quando encontra espaço, faz da alma um altar e da vida, um recomeço. Como se o tempo e o desgaste tivessem polido, e não destruído, nossa verdadeira forma.
Já não era somente uma talhadeira quase descartada que, pelo fogo, pela marreta e pelo tempo certo, despertara. Tornara-se símbolo. Tornara-se como uma espada. E aquilo que o mundo descartaria, ao ser tocado pelo propósito, reencontra sentido. E, sim, também uma belíssima representação da verdade, da justiça e da autoridade interior: o nascimento de uma integração renovada.
E, em certo dia, voltei à obra levando comigo a talhadeira. Outrora enferrujada e sem função, e que agora cintilava em sua nova forma. Havia reencontrado sua utilidade, sua força e, por que não, sua canção interior. Havia música ali: uma canção de reencontro.
Na minha mente, a espada de Excalibur permanecia. Ainda cravada na rocha, ainda silenciosa, esperando não por braços fortes, mas por alguém em sintonia com a verdade, alinhado com o sagrado. Alinhado com o que é justo, com o que é íntegro.
E nós? Quantas vezes estamos como essa talhadeira, ou como a espada esquecida?
Perdidos em um mar de excessos, de urgências vazias, em um mundo que se afastou da simplicidade da fé, da leveza, da alegria e da clareza da verdade. Um mundo, aliás, cada vez mais afastado e distante de tudo isso, onde tantos ainda correm para longe de si mesmos, perdidos entre vaidades e urgências desenfreadas, por nada que realmente preencha.
Mas ainda há tempo.
Ainda há fogo.
Ainda há espadas que podem ser retiradas.
Ainda há ferramentas que podem ser restauradas.
O mundo lá fora vai seguir desorientado. Mas, dentro de nós, algo pode se realinhar. Como um caminho de volta que só se inicia por dentro. No conhecimento que serve de ponte para a iluminação. Naquilo que, com simplicidade, nos devolve a alegria de sermos quem somos, com o compromisso de praticar o bem não por obrigação, mas como expressão natural da alma.
Viver neste tempo talvez seja isso: retornar à origem, atravessando o labirinto da matéria até encontrar, no centro da pedra, o ponto exato onde luz e sombra dançam em harmonia. Ali repousa a Excalibur da alma, esperando o instante em que nos reconheçamos dignos de tocá-la.
A cada novo dia, mais almas, já despertas ou em processo de despertar, ouvem o sutil chamado que emana do Alto. É um chamado profundo, envolto na quietude sagrada de uma Presença que não impõe, apenas convida.
Algumas almas florescem em silêncio; outras se rasgam em meio ao tumulto. Esse chamado é capaz de atravessar qualquer véu da ilusão deste mundo moderno. Alcança corações endurecidos e penetra onde a vida, por vezes, negou escolhas, impondo severas limitações.
O número de almas tocadas é crescente, e crescerá ainda mais, como aquela luz que, por uma fresta mínima, insiste em infiltrar-se entre as sombras. Cresce porque é da natureza da luz expandir-se. Cresce porque a verdade, mesmo adormecida, pulsa viva na memória da alma.
Para que essa luz se firme, necessário se faz que cada um de nós se mantenha firme no propósito, buscando a direção do Pai Supremo - Fonte de toda luz e verdade. Nele, reencontramos o eixo. Nele, a consciência cresce, se expande e continuará a fazê-lo, sustentando a fé que orienta nossos passos. Porque o retorno à verdade não é um caminho a ser escolhido: é um destino inevitável.
Nesse ponto sagrado, onde a alma se curva diante do Pai Celestial, descobrimos, enfim, que o despertar não é uma chegada, mas um retorno. Um retorno ao Sagrado dos Sagrados que nos sustenta; à Fonte Suprema, silenciosa e eterna, que nos habita. Todos nós, portadores de espadas invisíveis, cravadas em pedras simbólicas, à espera do instante de lucidez em que, enfim, reconheçamos a centelha do Eterno: o Sagrado que pulsa em cada um de nós.

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Esta é uma obra editada sob aspectos do cotidiano, retratando questões comuns do nosso dia a dia. A crônica não tem como objetivo trazer verdades absolutas, e sim reflexões para nossas questões humanas.