Crônica #131 | A travessia do vazio existencial.
- Redação neonews
- há 2 dias
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Dor que nasce do não saber por quê.

O que você encontrará nesta crônica:
"Você já sentiu um vazio sem nome? Às vezes, tudo parece estar no lugar, menos nós. Tudo em nós é excesso e, ainda assim, tudo é falta. Mas falta de quê, de quem, de onde? Há dores que não doem, mas pesam. Um cansaço que o descanso não resolve. Já se sentiu fora de lugar, mesmo estando onde sempre quis estar? Incompleto, à beira de partir, mesmo sem saber para onde? Talvez você também já tenha estado nesse lugar sem mapa. Esta crônica nasceu dessa travessia, do vazio existencial, das buscas que desafiam o tempo e a lógica. Aqui, talvez encontre um espelho, um abraço ou o início de um recomeço."

I. Asas e raízes: a Libélula e o Guardião.
Tenho o hábito de carregar comigo um pequeno caderno, lápis e borracha. Gosto da ideia de, dentro do meu cotidiano, registrar aquilo que me toca, seja em palavras, que se tornam pequenas crônicas, seja em traços, que esboçam as paisagens por onde passo.
Durante uma viagem a um arquipélago de ilhas tropicais, onde o nascer e o pôr do sol banhavam o mar com uma luz quase sagrada, resolvemos, certa tarde, nos afastar da praia e seguir para o interior da ilha. O plano era simples: pernoitar em uma pousada rústica, em harmonia com a natureza local. A caminhada nos levou à margem de um lago de águas calmas. Escolhi um banco feito de troncos e me sentei. Peguei meu caderno e comecei a desenhar o cenário diante de mim. O entardecer se aproximava devagar, tingindo tudo de dourado.
Atrás de mim, um poste de madeira sustentava um velho lampião a querosene. Um senhor de andar calmo e mãos experientes se aproximou e o acendeu, mesmo com os últimos raios do sol ainda no céu. Era conhecido pelos moradores como o Velho Guardião. Seu corpo trazia os sinais do tempo mas, os olhos tinham uma lucidez que brilhava. Sua figura lembrava o próprio lampião antigo: firme, silencioso, persistente. Ele parecia carregar uma luz discreta, porém constante. Sabia esperar, como o lampião que permanece aceso, mesmo quando ninguém passa pela trilha.
Logo à frente, sobre uma pedra cercada por taboas - aquelas plantas de folhas estreitas, caules altos e coroadas por delicadas espigas marrons, que crescem à beira d’água -, estava ela. Uma jovem de postura e traços delicados, roupas leves em tons de azul translúcido. Tinha o olhar distante, carregado de uma solidão existencial. Era chamada ali por um nome meigo e poético: Libélula. Talvez por seus passos leves e sem peso, quase flutuantes, ou pelos olhos grandes e atentos, que pareciam captar os detalhes invisíveis aos demais.
Sua alma inquieta não se encaixava em mapa algum. Estava sempre partindo; tinha um jeito de pousar sem se fixar, como quem está em busca de algo. Tudo nela lembrava uma libélula: esse delicado ser que nasce na água, mas vive no ar, dançando entre mundos, com asas que cintilam sob a luz do dia e deslizam entre o ar e a água ao entardecer. Com a graça de quem pertence e transita entre dois mundos, o visível e o sensível, o real e o imaginado, ela parecia carregar em si o mistério e a delicadeza do fim do dia, que já se espalhava no ar.
A ponta do meu lápis quebrou. Enquanto buscava o apontador em minha mochila, um diálogo inesperado rompeu o silêncio. E então ouvi vozes, não sei se vinham de fora ou de dentro. Talvez das duas direções, mas eram reais. Humanas, sim, mas de outra ordem: de algum lugar que talvez só a alma pudesse ouvir.
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Il. A noite escura da alma.
- “Por que tanta quietude, moça dos olhos tristes?”, perguntou o Velho Guardião, enquanto ajustava a chama do lampião próximo à jovem.
- “Qual o sentido de viver, meu caro Guardião? Já vivi o que tinha de viver... e, mesmo assim, não me preenchi”, devolveu ela, fitando o fogo, sem erguer a cabeça. Havia nela uma inquietação que não nascia da pressa e parecia vir de uma ausência antiga. Um vazio que habitava seu peito com um peso difícil de traduzir. O Guardião apenas escutava, com a paciência de quem já viu muitas almas se perderem, em dores que só se dissolvem no tempo certo. Esperou, não respondeu.
Há muitos momentos em nossas vidas em que tudo parece desabar. Nada anima, nada consola. Às vezes, não é exatamente tristeza. Também não é depressão. É um vazio que a linguagem não alcança, um espaço oco dentro do peito que não se preenche com nada do que o mundo oferece.
A alma, cansada, não quer mais lutar... só quer entender por que vive. Essa é a noite escura da alma. Muitos a sentem e tentam calá-la com distrações, rotinas, amores apressados ou conquistas acumuladas. Mas ela insiste.
Às vezes, surge quando o que se acumulou por fora já não sustenta mais o que falta por dentro. Esse vazio não escolhe rostos nem épocas, e é um sintoma cada vez mais comum neste tempo em que vivemos. O homem de hoje, atolado em compromissos e consumo, muitas vezes se vê tomado por uma sensação de inutilidade ou de não-pertencimento. E, sem perceber, um grande vazio vai se instalando.
A moça das asas leves parecia ter mergulhado nessa noite. Sua alma parecia cansada, carregando uma espécie de ausência primitiva. O Guardião continuava ali, sem urgências. Acendia sua luz, mesmo sem saber se alguém voltaria pelo caminho.
Então, a jovem falou, num tom de confissão que parecia atravessar o tempo:
- “Não sou mais útil por aqui. Fiz o que podia. Tive o que deveria ter e senti tudo o que deveria sentir. Não sei onde meus pais estão. Nem sei se ainda estão... mas sinto que minha alma ficou esperando por eles em algum lugar. É como se algo tivesse morrido antes de mim. E eu fiquei incompleta. Tudo em mim é excesso: de lembrança, de medo e de busca. E, mesmo assim, tudo em mim é falta. Sinto saudade de algo que nunca encontrei, um silêncio que dói. Parece que estou ausente de mim mesma.”
O Velho Guardião olhou para ela com ternura e disse:
- “Mas feliz é você, que pode voar. Eu, em contrapartida, fico aqui, como que fincado na terra, preso à minha função de brilhar quando tudo escurece, iluminando caminhos para os que se perdem na trilha.”

lll. O desejo de partir.
Ele se movimentou devagar, colheu uma folha seca no chão e a soprou no ar.
- “Mas porque esse desejo de partir definitivamente para outra ilha, moça das asas finas?”
-“Talvez... quem sabe eu possa ser mais livre lá. Talvez lá não haja mais sofrimento”, respondeu, quase num sussurro.
O velho homem sorriu, mas foi com os olhos que falou mais:
- “E como sabe disso, se ainda não esteve lá? Pode parecer que não, mas há muito ainda a explorar nesta ilha.”
Ela tentou argumentar:
- “Como assim? Eu já vi tudo. Pairo no ar e vejo a terra, pouso na superfície da água e vejo o fundo do lago. Alço voo e sinto a liberdade do vento e o calor do sol. Conheço as planícies e as florestas. Sinto que não há mais nada aqui para mim.” Mas, ele insistiu com a firmeza de quem sabe o valor da permanência:
- “E as outras libélulas, que ainda não conhecem esse território? Vai deixá-las sem teu testemunho? Sem tua presença? Você ainda poderá fazer voos mais altos. E como cruzará a longa travessia, se ninguém veio te buscar?”
Ela respirou fundo, buscando palavras que não surgiam com facilidade.
- “Então me diga: por que eu ainda deveria permanecer aqui?”
O Guardião respondeu, sua voz tranquila e firme, mais reveladora do que consoladora:
- Você conhece bem a ilha por fora, mas desconhece a que vive dentro de si. Já explorou cenários ilusórios, mas ainda não mergulhou no verdadeiro sentido de sua existência. Muitos ignoram a beleza delicada e o equilíbrio da libélula, que sabe flutuar entre o ar e a água sem esforço, vivendo entre dois mundos. Se sua alma está cansada, permita-se repousar no silêncio, como a flor de lótus que floresce na calmaria da água, renovando-se mesmo nas condições mais difíceis. Escute essa serenidade, ela tem muito a ensinar.”
Vivemos hoje muito imersos na materialidade, da qual dependemos para viver. Contudo, as conquistas externas, por mais reluzentes que pareçam, perdem o encanto com rapidez.
Por fazermos tudo muito na fisicalidade, a alma, em um cansaço profundo de tanto buscar fora, percebe que nenhuma delas é capaz de preencher a ausência de um sentido mais profundo para existir. Pode surgir, então, uma sensação de vazio, não pela falta de coisas, mas pela falta de significado.
Quando os valores se reduzem apenas ao que se pode tocar, medir ou acumular, e falta um ideal mais elevado, nasce um desconforto silencioso. Cedo ou tarde, percebe-se que o que falta não está fora. E nesse espaço entre a aparência e o essencial, nasce o mal-estar da alma: eis então o vazio existencial.
Ela silenciou. O tempo a tinha marcado, mas não curado. Apesar de tantos voos, mesmo após tantas entregas, havia nela uma tristeza que se espalhava como neblina fina ao amanhecer.
- “O tempo me marcou... e não me curou”, confessou.
Ele assentiu com o queixo, como quem reconhece verdades sem precisar julgá-las:
- “Carregas dores de memórias antigas, muitas culpas que podem nem ser tuas. Estiveram nas tuas costas para te fazer crescer. Teus voos têm importância... sem eles, outros campos talvez jamais floresçam. Busque teus pais, acolha tua história. Mas aguarda o chamado certo e não partas antes da hora. Você já se perguntou para onde deve ir, e por que deve ir? Será que tua missão ainda não respira por aqui?”

lV. Toda dor, um dia, cansa de doer.
O Velho Guardião não tinha pressa em sua voz, apenas o cuidado de quem não quer assustar uma alma ferida.
-“O vazio que te habita não é punição”, disse à jovem Libélula.
A dor existencial é como o inverno da alma, um tempo de recolhimento que antecede a renovação interior.
Ela silenciou, absorvida. Era o tipo de silêncio que não se deve quebrar, aquele em que algo profundo está se rearrumando por dentro. Acontecia ali o encontro do movimento com a permanência. Ela, sempre em voo, buscando fora o que faltava dentro. Ele, sempre aceso, esperando. Como se ambos habitassem os extremos do mesmo mapa existencial: a busca e o repouso. Na conversa entre os dois, era como se as perguntas da juventude tivessem encontrado, por um instante, a paciência da maturidade.
Libélula, desde pequena, aprendera a sobreviver sem saber como. Carregava em si o frio da infância sem os pais. As vagas memórias confusas, que o tempo não decifrou, ainda a atormentavam. O desaparecimento deles era um buraco que os dias não taparam, apenas alargaram. Cresceu entre lembranças partidas e com uma dúvida que a acompanhava como sombra: “E se eu tiver sido esquecida? E se estou procurando vestígios onde, na verdade, nunca houve nada?”
O Guardião, sentindo sua angústia, apenas complementou:
- “Teus pais te deram a vida. Mas cabe a ti, porém, dar sentido a ela.”
Libélula deixou a pergunta escapar, como se fosse antiga demais para permanecer calada:
- “E se eu nunca souber o que aconteceu com eles?”
- “Então, jovem de coração bondoso, aprenderás que amar o invisível também é um caminho de luz.”
Nesse momento, algo nela pareceu ter começado a ceder. Como quem retira um véu, como quem aceita uma verdade. Não era paz ainda, mas talvez o início de uma escuta mais profunda. Apenas ficou ali... sentada à beira do próprio vazio, escutando-o como quem escuta o coração do universo.
- “Eles não estão ausentes...”, completou o Guardião com suavidade. “Talvez estejam em outros caminhos, seguindo ritmos diferentes do teu. Há vínculos que não se rompem, mesmo quando os passos já não se encontram.”
Ela abaixou o olhar, e sua voz cansada lamentou:
- “Mas eu senti tanto a falta... me desfiz tentando encontrar respostas, encontrar um traço, uma direção, qualquer sinal.”
O Guardião assentiu, compreendendo:
- “Às vezes, a ausência não é o fim, pode ser um intervalo. Há encontros que a alma precisa amadurecer para reconhecer. O reencontro, quando for o tempo, será guiado pelos laços que nunca se desfizeram.”
E ela chorou. Um choro manso, de rendição. Um pranto que não pedia respostas, apenas libertação. Já não precisava entender tudo para continuar voando. Foi então que compreendeu, com o corpo todo: toda dor, um dia, cansa de doer. E, quando já não encontra mais onde se esconder, ela se transforma, às vezes em lágrima, às vezes em palavra. E quase sempre, em porta.
Mais do que dor, o sofrimento é solo onde as raízes da consciência começam a crescer. O vazio existencial, por mais cruel que pareça, é uma espécie de chão novo. Ele pode remover o que era ilusão para que a verdade possa, enfim, nascer.
E só quem já caiu nesse abismo e se sentiu perdido, deslocado, incompleto... entende o que é isso. E sabe: depois da queda, nasce a escuta. E é aí que começa o reencontro.
Naquele entardecer quieto, ela compreendeu que esperar não é desistir; é, muitas vezes, um ato de confiança. Algumas dores não se curam na pressa. Há respostas que só chegam quando o coração está pronto para escutá-las.
Talvez o Velho Guardião e a Libélula morem em todos nós. Ela, com sua quietude inquieta, nos lembra da busca, de que há algo mais, mesmo quando tudo parece sem sentido. Ele, com sua luz discreta, nos ensina a permanecer acesos, mesmo quando ninguém passa pela trilha.
A vida, quem sabe, não seja senão esse diálogo sutil entre o movimento e a permanência.
Entre o desejo de partir e a coragem de ficar. E quando essas duas forças, tão opostas quanto complementares, se reconhecem, ainda que por um breve instante, algo profundo se acende.
E até o universo, então, em respeito e reverência, silencia... para ouvir.
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Comunicado neonews
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Esta é uma obra editada sob aspectos do cotidiano, retratando questões comuns do nosso dia a dia. A crônica não tem como objetivo trazer verdades absolutas, e sim reflexões para nossas questões humanas.