Crônica #126 | Viajante das entrelinhas.
- Redação neonews
- há 1 dia
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Parte 4: No caminho do furacão.

O que você encontrará nesta crônica:
"Você já se imaginou no olho de um furacão? Quando tudo gira sem controle, o que somos e o que nos sustenta parece flutuar entre as incertezas. Um furacão, longe de apenas soprar, devora e arranca. No caos, ilusões e crenças se desfazem, laços se rompem, e o que fomos se desfaz como poeira. Quando tudo desaba, o coração aprende a sentir de verdade. No colapso, a alma precisa escolher. Você se renderia ao medo ou se ergueria pela fé? Há furacões que não destroem, mas despertam e libertam. Não se trata de perda, nem de fim, é uma passagem. E só quem atravessa o vento descobre, enfim, a força do próprio voo."

I. Caminhos do Norte.
Mieko seguiu para o sul. Seus olhos buscavam Okinawa. Meu destino, sendo o norte, segui em rumo oposto. E, pedalando, entrei na província de Akita, que se apresentou com um imenso e vasto tapete verde de arrozais, estendendo-se como um manto sem fim, dissolvendo-se no horizonte. O ar trazia o cheiro doce da terra viva, e o sol, persistente e generoso, desenhava sombras longas que me faziam companhia nas estradas quase desertas.
Aomori veio em seguida, trazendo consigo um respiro mais calmo. Ali, o calor ganhava outra textura, mais espesso e úmido. Parei à beira-mar para encher minha garrafa de água, e um senhor me ofereceu maçãs frescas: “De Aomori, as melhores”, disse ele, com os olhos brilhando de orgulho. Sentei-me ali mesmo, onde a brisa carregava o cheiro de sal e de frutos maduros, sentindo a doçura da maçã. E, enquanto contemplava aquele horizonte, o mar já anunciava, em sua vastidão, o fim da ilha.
E então, como quem atravessa um portal, deixei para trás Honshu, o Japão continental, ao embarcar numa balsa que cruzava o estreito rumo a Hokkaido. O vento quente me envolvia, enquanto Hakodate, a primeira cidade do estreito, surgia, dando-me as boas-vindas com suas luzes suaves e um céu que parecia não se apressar em escurecer. Cada pedalada até chegar ali, naquela calma do entardecer, me reconectava com algo que o tempo e a pressa tantas vezes esquecem: o simples e silencioso ato de apenas seguir.
Pedalei devagar pelas ruas inclinadas, subindo ladeiras que levavam a mirantes silenciosos, e o mundo ali parecia suspenso. Hokkaido se abria diante de mim como uma trilha conduzida pela calma do verão.
Em uma das ruas, um grupo de crianças caminhou ao meu lado por alguns metros. Riam, apontavam para minha bicicleta carregada, como se eu fosse uma criatura vinda de algum outro mundo. Talvez eu fosse mesmo. Hokkaido, no verão, tem esse jeito de acolher sem tocar. Tudo é vasto, mas nada é vazio. E eu, naquele pedaço de mundo, começava a sentir que seguir adiante, às vezes, é apenas estar, aprendendo que algumas travessias começam primeiro dentro de nós mesmos.
Minhas pernas cansadas carregavam agora um coração curioso ao chegar em Sapporo. As avenidas largas, o cheiro de “ramem” flutuando pelas esquinas. Pedalei até Odori Park, o céu azul quase sem nuvens e um calor que não sufocava. À noite, pedalando pelas ruas de Susukino, deixei-me levar pelos sons e pelas luzes, que pareciam dizer que a solidão e a multidão podem, sim, coexistir. E então, uma Sapporo Beer gelada, a famosa cerveja local, foi meu brinde. Um gole leve e marcante. Era um brinde às subidas vencidas, às chuvas inesperadas e às pessoas que cruzaram meu caminho. Aprendi naquele momento a brindar o caminho.
Era o final do horário do almoço quando me deparei com um restaurante simples, mas acolhedor, onde o aroma do “ramem”, uma sopa de macarrão típica dali, envolvia todo o ambiente. O local era gerido por uma casal de idosos, descendentes dos Ainus, o povo indígena do Japão, cuja história e cultura são bastante distintas da maioria da população do país. A avó e seu neto conversavam em sua língua nativa, distinta da língua japonesa, preservando sons e expressões de um passado bem remoto.
O traje peculiar da senhora havia chamado minha atenção antes mesmo que suas palavras me alcançassem. Suas roupas, ricas em bordados coloridos de animais e plantas, pareciam carregar a própria natureza sobre o tecido. Assim também, a profunda conexão com a natureza estava na religião e nas crenças espirituais. Confeccionado com fibras vegetais, aquele vestuário tinha ligação com suas origens, a herança dos Ainus. E eu, apesar de ser apenas um estrangeiro partilhando uma refeição, naquele instante me sentia diante de um pedaço vivo da história, imerso em uma cultura que, silenciosamente, ensinava sobre a resistência do espírito humano diante do passar do tempo.
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Il. Raízes em flor.
Meu tempo contado me obrigava a iniciar a jornada de volta. No retorno para Aomori, decidi, por impulso, mudar o trajeto para conhecer o Parque Osorezan, lar de um vulcão ativo. Deixei minha bicicleta em uma estação de trem e, em um tour, segui de micro-ônibus. A guia explicou que Osorezan é considerado um dos três locais mais sagrados do Japão e, de fato, não era apenas paisagem, era atmosfera. Um daqueles cenários que nos faz confrontar a dualidade entre o belo e o assustador. Montanha do Medo é o significado de seu nome, e o Monte Osore está envolto em lendas antigas e mistérios que o tempo não apaga.
Sua paisagem árida, coberta por cinzas vulcânicas, exalava um silêncio que não era apenas a ausência de som. Parecia conter a presença de algo mais, um tipo de fronteira entre o mundo dos vivos e o espiritual. Vapores sulfurosos surgiam da terra, e o ar denso carregava um odor intenso de enxofre. Um lago, cercado por rochas vulcânicas, refletia o céu cinzento em suas águas esverdeadas pela alta concentração de enxofre. O cenário era de uma beleza que mesclava o belo e o perturbador.
Era um lugar que parecia entrelaçar a natureza e a espiritualidade, um ponto em que a alma, em silêncio, se curvava diante do mistério, reconhecendo sua presença. E foi isso que Osorezan me ofereceu: uma pausa sagrada, um momento em que o tempo não me empurrava e, por um breve milagre, consegui simplesmente... estar. Voltei para buscar minha bicicleta com a sensação de carregar um silêncio que apenas acolhia, perguntando a mim mesmo qual seria o território sagrado que habitava meus passos, convidando-me a ver o invisível.
Você já sentiu sua alma se curvar, não por fraqueza, mas por reverência ao inexplicável?
Na manhã seguinte, segui em direção à província de Iwate. O caminho se desdobrava por entre montanhas e campos silenciosos. Atravessei vilarejos até alcançar uma vila remota, e foi ali que encontrei o berço da infância de minha mãe, onde ela nasceu e viveu seus primeiros anos.
Senti que o passado dela ainda respirava quando descobri que uma antiga amiga de escola ainda morava ali. Fui recebido com muita hospitalidade. Ela cultivava crisântemos no quintal e, para minha surpresa, preparou um tempurá feito com as flores recém-colhidas. Nunca um sabor me pareceu tão frágil e tão vivo. Era a primeira vez que provava algo tão delicado e, ao mesmo tempo, tão carregado de memória.
Enquanto partilhávamos o chá e o tempurá, ela desfiava lembranças com brilho nos olhos: as brincadeiras no rio que passava pela vila, as tardes na velha escola, as cerejeiras explodindo em cor com suas flores, e os pés de caqui que, a cada outono, tingiam a paisagem.
Passei dois dias ali, como quem recolhe pedaços de lembranças e fragmentos de uma história que também era minha, uma parte de mim que, até então, eu desconhecia. E, entre histórias e silêncios, parti levando comigo a sensação de ter reencontrado algo que, sem saber, sempre esteve à minha espera.
Seguia em direção ao sul, cruzando as províncias de Miyagi e Fukushima. Além da bicicleta, um pequeno rádio tornara-se meu fiel companheiro de viagem. Foi ele quem me trouxe a notícia de que um forte furacão avançava pelo sul, justamente na direção da próxima província que eu deveria atravessar. Tochigi seria meu último desafio antes de chegar em casa.
Já havia sentido a força da natureza quando um terremoto me despertou no meio da noite. A sensação foi inquietante e estranha: o chão parecia uma plataforma solta, movendo-se de um lado para outro, como se a terra, viva, respirasse sob meus pés. Aquilo ficou impresso em mim como uma lição muda sobre a fragilidade. Agora, outro teste se anunciava no horizonte. E eu apenas pedalava, atento ao céu que começava a pesar e ao vento que trazia seu aviso.

lll. O caos gira, o centro silencia: no olho do Furacão.
Não tinha dado muita atenção aos noticiários, subestimei o alerta, achando que seria apenas uma tempestade passageira. Mas a surpresa veio quando o furacão me encontrou pessoalmente.
As nuvens se fecharam, trazendo ventos que, a princípio, ainda eram brandos, aquele tipo de vento que desafia o equilíbrio.
Foram pequenas rajadas que desorganizaram minha rotina, meus planos, aqueles mapas cuidadosamente traçados. Até que, em determinado momento, o céu escureceu de vez, e o vento se tornou tão intenso que me impediu de continuar pedalando. Minha vida, naquele instante, perdeu a forma que tinha, e tudo começou a girar ao redor de uma única pergunta: e agora?
Com muito esforço, consegui chegar a um hostel. E ali fiquei. Três dias.
Existem muitos dias em que a vida sopra forte demais. E não adianta tentar seguir a rota, porque o que chega é realmente um furacão. Não desses anunciados pela meteorologia, mas daquele invisível aos olhos dos outros, que se move por dentro, devastando e fazendo a alma ser arrancada do chão. E esse vento, por fim, leva consigo as coisas que não têm raízes firmes. Será que sabemos o que vai permanecer inabalável dentro de nós, em meio às tempestades que nos atingem?
Três dias de espera, de escuta, de pausa forçada e necessária que o caminho impôs. Aprendi muito com a natureza, com a anfitriã gentil do hostel e com um executivo em trânsito, que também se hospedara ali. Me vi ali, detido pela força da natureza, e pensei nas outras vezes em que planos e sonhos foram interrompidos por fatores externos, por imaturidade ou até mesmo pelo ego. Mas, desta vez, era diferente. Era um freio que não feria, que me trouxe um outro tipo de compreensão. Meu plano para aquela jornada não poderia ser interrompido, não por completo. Um futuro próximo me esperava: as aulas da faculdade, além de toda a minha vida quando retornasse para o meu país de origem.
Foi ali que me tornei uma casa de portas e janelas tremendo, estruturas colocadas à prova. O furacão exige presença, não há onde se esconder, pois ele desmonta o que era conforto, e somos obrigados a olhar para dentro, lá nas profundezas de nossos íntimos. Talvez os ventos mais perigosos não sejam os de fora, mas aqueles que giram entre o medo e a razão, entre o vazio e o desejo, expondo nossa verdadeira estrutura interior. E então, somos forçados a reconhecer o que nos habita.
E fiquei a meditar sobre o olho do furacão, aquele que existe no coração da tempestade. Um grande paradoxo se abriu em minha mente, pois, no meio de todo o caos, ali, no olho do furacão, o tempo parece parar. E então, parece revelar que, muitas vezes, é preciso que o mundo desabe para que o centro, a alma, escute.
Refletir sobre a existência desse ponto de silêncio absoluto, mesmo com tudo a se agitar ao redor, trouxe conclusões que só são possíveis nesse tipo de pausa. Depois da fúria, há sempre o pouso da brisa. Somente do centro do caos se ouve o que o ruído da pressa encobre, assim como as muitas coisas que precisam ser mudadas, coisas que precisam partir ou, então, outras que podem nascer.
Será que temos coragem de permanecer no centro da tempestade, para realmente escutar o que somente ali pode se revelar?
Não seria nesse ponto que começa o processo? Aquele desafiador, capaz de ir além das distâncias, transpor os limites que se fazem necessários, permitindo que o que não se sustenta seja levado. E então chega, limpando tudo, escancarando o que muitas vezes fingíamos segurar. E quando, enfim, o furacão se vai com o cessar dos seus ventos, o silêncio não será mais o mesmo de antes; será o silêncio depois da revelação. Respirei fundo e apenas continuei, sabendo que nem todo atraso é um desvio. Às vezes é o tempo exato de amadurecer o passo seguinte.
Quantas vezes julgamos ou confundimos pausa com desvio, quando, na verdade, é apenas o tempo de amadurecimento?
Depois de vinte e um dias de estrada, voltei à faculdade. Minha bagagem não cabia em mochilas; era feita agora pela riqueza das histórias vividas, pelas paisagens que se imprimiram na minha alma com imagens que o tempo não apaga e, ainda mais valiosos, os laços humanos, aqueles que nenhuma câmera é capaz de capturar. Fui convidado a compartilhar a experiência com um grupo de estudantes secundaristas, durante um encontro dedicado às escolhas profissionais e caminhos de vida. A imprensa local reportou minha jornada, e o que mais ouvi foram as palavras coragem e ousadia. Para mim, o furacão veio como um mestre severo, desses que ensinam com a força do inesperado. Acredito que muitas de nossas lições só o vento forte é capaz de soprar para dentro da alma, desorganizando certezas para reorganizar sentidos.
E assim se fechou o ciclo da intensa jornada que abracei sobre duas rodas. Longe de ser apenas uma travessia geográfica, foi, sobretudo, uma escuta paciente dos silêncios que me acompanharam como sombras fiéis. Foram muitas as vezes em que mergulhei em mim mesmo, levado pelas perguntas que surgiram entre as muitas curvas do caminho. E os dois amigos das entrelinhas estavam lá, como num reencontro de longa data. Cada pedalada trouxe experiências inesperadas, revelou as paisagens externas, mas muitas internas também, revelando territórios que eu sequer suspeitava existir. O vento, que no início me refrescava, ao final se fez resistência, tornando-se obstáculo. Tornou-se mestre, enfim. Os ensinamentos não chegam pelo conforto. E me aprofundei, pensando: quantas viagens começamos sem nunca termos chegado a nós mesmos?
No começo, meu corpo parecia ir à frente, inquieto, enquanto minha alma, hesitante, seguia atrás.
Mas, nas pedaladas, foram se ajustando, alinhando o ritmo do diálogo silencioso entre o corpo e a alma. E então, as paisagens passaram a ser mais intensamente sentidas. Já não era mais o mesmo - nem o silêncio, nem o corpo, nem a alma. O silêncio havia ganhado outra espessura, o corpo, outra escuta.
E a alma..... essa, enfim, parecia ter aceitado caminhar ao meu lado, desperta e presente. E quando corpo, alma e silêncio passam a pedalar juntos, mesmo sob a tempestade de um furacão, as estradas passam a ser apenas internas, profundas, inteiras e infinitas em si mesmas.
Dizem que basta aprender a pedalar uma vez para nunca mais esquecer. Então, talvez o verdadeiro desafio esteja em ensinar a alma a seguir junto, sem medo, sem pressa, pedalando com a vida. Pois, quando a alma aprende a permanecer, até o furacão se curva, tornando-se brisa que embala e conduz.
Onde, afinal, está nossa verdadeira vitória nesse eterno pedalar que é a nossa vida?

Time Crônicas
Comunicado neonews
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Esta é uma obra editada sob aspectos do cotidiano, retratando questões comuns do nosso dia a dia. A crônica não tem como objetivo trazer verdades absolutas, e sim reflexões para nossas questões humanas.